Depenaram a Garça. Ficou o Real. By Casa da Calçada

A experimentar

Embora com poucos anos no “mercado”, onde antes era o Café Garça Real, este Real by Casa da Calçada já deu algumas cambalhotas. Lembro-me, com Hugo Rocha à frente dos fogões, de ter um jantar de amigos e combinarmos lá o encontro. Achámos algo estranho, num espaço com uma aparente boa onda, não se ver vivalma. Desistimos e não entrámos. 

É o risco, de se “esconder” a sala principal e deixar como montra o bar que, por muito bonito que seja, se não tem tração e clientes, acaba por intimidar e deixar a dúvida sobre se deveremos avançar.

Com Hugo Rocha não correu da melhor forma, o espaço esteve novamente em obras e reabriu recentemente, após uma consultadoria técnica do chef Renato Cunha, do sempre consistente e criativo Ferrugem em Famalicão. No meio de tanto barulho e com(fusão) no fine dinning, aqui o conceito é simples. Cozinha Tradicional Portuguesa genuína e sem grande “contradição”, com uma apresentação esmerada em bonitos tachos de ferro, acobreados ou com um pano a suportar os estaladiços e fofos bolinhos de bacalhau, as pataniscas crispy com um interessante toque de curcuma ou uns croquetes retangulares de rabo de boi bem estufado e intenso, com panko a encimar. Numa segunda visita, experimentámos os boletos salteados com gema de ovo curada, que se apresentaram algo neutros no sabor. Os boletos estavam tenros, o ovo gelatinoso, como se pretendia, um pico de salsa, mas um pouco mais de sal ou umas túberas de Trás-os-Montes elevariam o prato.

Com a Casa da Calçada em obras, o chef Emiliano (ex sub-chef de Tiago Bonito na Calçada) e seus muchachos, rumaram ao Porto e tomaram conta da cozinha com categoria. 

Sala clássica com toques contemporâneos, soalho de madeira, paredes num verde azeitona escuro, espelhos para dar amplitude, mesas bem espaçadas para se poder conversar com toda a privacidade e uns confortáveis cadeirões cor de tijolo que dão alegria ao espaço. Toalha passada a ferro no local e restante parafernália de qualidade. Uma maravilhosa claraboia abre nos dias de verão, transformando o espaço num pátio ao ar livre.

Na primeira visita, acompanhado por um Mouchão 2015 (e com a minha mulher) ainda com os aromas fechados e taninos firmes (no Mouchão, é claro), mas já com uma fruta confitada e frescura mentolada de grande classe (em ambos), apostamos no galo pica no chão (2 pax). E em boa hora o fizemos. Os bichos, caseiros, vêm da H2Douro, de Lamego, muito bem estufado com a carne a lascar ao toque do garfo, aquela gordura amarela e pele grossa que não engana, arroz carolino com alguma goma a unir e no ponto de dente perfeito. Para mim, que gosto dele bem avinagrado, note-se o requinte de trazerem um spray de Moura Alves para o “plus” final. Um pormenor que fica registado.  

Na segunda visita, o bacalhau à Brás, feito com um pil pil das espinhas do gadídeo, que depois entra na cebolada e eleva em sabor este prato para outro nível. A cor mais esbranquiçada, com que se apresenta, fica assim justificada. A cremosidade não vem de natas nem da qualidade dos ovos. Bacalhau em boas lascas e boa batata frita.

Os filetes de pescada com arroz de tomate tinham a particularidade de serem fritos quase só com o ovo e praticamente sem farinha. Ficam crocantes, a pescada tem boa frescura e consistência, num prato tradicional de boa execução que se recomenda. 

Nos rojões com milhos de fumeiro e couve portuguesa, o grande diferenciador é estufar ligeiramente a couve e acrescentar um bom golpe de vinagre, para depois adicionar aos milhos já envolvidos com o chouriço de carne em pequenos cubos. Fica delicioso e vou aproveitar a dica para fazer em casa. Os rojões da barriga são imensamente saborosos, tenros e para mim só tiveram um pequeno defeito: como não são feitos na hora no pingue, a pele não fica crocante mas algo elástica. 

Para as sobremesas, dois bonitos carrinhos: um com a doçaria, outro com queijos. Bom, aqui, se o carrinho falasse sentir-se-ia envergonhado. Queijo Senras (que eu compro no supermercado), Dona Amélia (leite de vaca, também de Famalicão), Queijo de Ovelha DOP de Castelo Branco, que sinceramente não gostei por achar pouco cremoso e sem os sabores acidulados e de “estrebaria” que tanta alma dão ao DOP Serra da Estrela e mais duas banalidades. Só faltava o queijo de bola. Havendo queijos portugueses com tanto gabarito, a escolha pareceu-me desajustada. Principalmente, com a apresentação de uma funcionária demasiado inexperiente, sem qualquer formação, que tremia a cada pergunta que lhe dirigíamos. 

Na doçaria, deixem-me dizer que há mais de 20 anos que não comia um pudim Abade de Priscos com este nível de perfeição. A untuosidade, a glicerina, o brilho e o caramelo estavam gloriosos. Parabéns a quem o faz, porque como este, só uma vez em Famalicão, com a vóvó Amélia, é que consegui provar algo deste campeonato. A Torta de Laranja é suculenta, não demasiado doce e muito agradável para acompanhar o café.

O serviço fica entre o competente e o inseguro. Depende de quem aparece. Todos conhecemos as dificuldades que existem, no entanto, ainda há um longo caminho a percorrer no serviço de sala do Real. Na cozinha, está tudo com grande sabor, ritmo, rigor e afinação e só por esse motivo (que considero o principal), este Real merece todos os créditos e uma visita de quem gosta de comer boa gastronomia regional com requinte.


José Manuel Pires

Empresário

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