Todos nós temos os nossos locais predilectos, que nos ficam para toda a vida, mesmo que só possamos ter estado neles uma ou raras vezes! Esses locais especiais, sem aviso, assaltam-nos na rotina dos dias como recordação e saudade, reminiscências numa notícia, numa fotografia, numa imagem de televisão ou da net, numa música ou trocar de vozes fortuitas, num perfume que se cruza, numa garfada ou colherada, seja no que for. Tal passou-se há dias, quando, no nosso quintal me entregaram o livro Mosteiro de São Martinho de Tibães – Uma Visita, de Aida Mata, Paulo Oliveira, Maria João Costa e Anabela Ramos, pelo qual, de repente, ao pegar-lhe, saindo do envelope e tendo rasgado a vira da folha, ao pensamento me veio a atmosfera elísia que em tempos senti, e que consegui reviver num instante, fechando os olhos, imagens em flash, cheiros e sabores. Estive mesmo lá, por diversas vezes, em Tibães, e o segurar e o abrir deste livro, olhar-lhe as fotos e ler-lhe alguns parágrafos, teve o mesmo efeito que espreitar pelo ponto de Aleph e usá-lo para transpor espaço e tempo, a partir do alto da nossa serra em Latães.
É que há uns anos tive a sorte, extraordinária sorte, de, por razões profissionais, ter de ir ao Mosteiro de Tibães pela mão do Mário Araújo, excelente amigo, aonde voltei com a Mariana e de que pude reviver emoções e retocar memórias, por vários motivos. Então, nessa vez primordial, pudemos conversar com a Doutora Anabela Ramos. Como, doutras vezes, pudemos visitar a igreja, os claustros, os corredores, a cozinha, os refeitórios, o jardim, a cerca. Tive a oportunidade germinal, quase iniciática, numa dessas visitas, de poder deambular só, de percorrer os soalhos rangentes, entrever outras épocas nos azulejos e tectos, olhar do coro e das janelas para outros mundos passados; capuzes com as vozes concertadas pelo in-folio de cantochão. Vislumbrar na cerca os frades e criados hortelãos, estar lado a lado com o magarefe, que abatia e esquartejava uma rês na mesa de abate junto à porta para o pátio das cozinhas, ao mesmo tempo que um noviço aparava o sangue para alguidares de louça e o benzia lançando sal, vinagre e louro; cheirar os vapores dos guisados e do doce perfume dos ovos com açúcar e canela – e está tudo isso aqui e agora ao escrever estas linhas.
Numa dessas visitas pude assistir a umas jornadas de apresentação dum livro de Anabela Ramos e Augusto Assunção, Cidrão: na História, no Campo e na Mesa, magnífico fruto que aparece nas naturezas mortas de Josefa d’Óbidos e cujas cascas secas a família Sodré exportava de Portugal para Boston e outros destinos, em barricas, livro então editado e produzido em colaboração da DRCultura do Norte, da ATAHCA e da DRAgricultura e Pescas do Norte, e outros. E, sobretudo, porque pude estar no lançamento dum dos mais fantásticos, importantes e apetecíveis livros sobre cozinha que em Portugal se publicaram até hoje no século XXI: Alimentar o Corpo e Saciar a Alma, Ritmos alimentares dos Monges de Tibães, século XVII, de Anabela Ramos e Sara Claro, carimbo editorial das Edições Afrontamento e da DRCultura do Norte. Várias vezes nos aconteceu, sentados em nomeados restaurantes por aí, pensar que bom seria se os cozinheiros modernos tivessem acesso a este livro e o compreendessem, no seu back to basics das cozinhas em que não havia microondas, nem infravermelhos, nem frigoríficos, nem electricidade!, e o que teria acontecido se os nossos monges desses séculos antigos tivessem tido acesso às tecnologias de hoje: teríamos o país semeado de Estrelas Michellin!
De forma que receber na mão Tibães, há dias, fez-me voltar à estante, benditas horas!, e folheá-lo mais uma vez, em cima da mesa, ao lado do computador, agora mesmo ao escrever, lendo uma página e outra, belíssimas páginas!, como quem está diante duma mesa sortida de acepipes e doces e se pode servir sem cerimónia e com bênção. Alimentar o Corpo e Saciar a Alma, Ritmos alimentares dos Monges de Tibães, século XVII é daqueles livros que se podem ler de trás para frente e de frente para trás. E que não maça – distrai e apetece que não acabe! Apetece, mas é, lançar mãos à obra e desatar a fazer experiências, com os conselhos seguros compilados ou mandados compilar por Luís Álvares de Távora, Prelado de Tomar e Chantre de Braga, o autor ou factor deste códice do século XVII da antiga livraria do Convento de Tibães, que neste livro nosso contemporâneo se estuda e reproduz magistralmente pelas suas autoras, Arte de Cozinha ou Méthodo de Fazer Guizados. São quase trezentas receitas dos mais variados ingredientes e temperos, “se o arroz for da India de graons compridos ferverá meia hora com caldo de vaca, e com boa copia, e outra meia hora estará afastado”, doces, cremes, guizados, assados, escabeches, sopas, uma de mermelos “fatiando o mermelo delgado coza-no em agoa sem sal. Escorrida a agoa, se tem azeite em h~ua tigela e cebola afogando-se, e depois de afogada a sebola se lhe deitão os mermelos cozidos e h~ua pouca de agoa, seo sal, pimenta, cravo, canela, asucar ou mel, e no prato asucar e canela”. Repetir e ensaiar estas receitas, dos doces com ovos, açúcar, leite e mel, aos legumes, às carnes e aos peixes e mariscos, é por si só uma licenciatura em cozinha apurada e inovação… com o antigo!
Nesse tempo não havia batatas nem outros produtos que hoje entendemos indispensáveis, por exemplo, para uma tortilha. E ir decifrando as receitas uma a uma, inspirando-nos a partir da mente objectiva com que foram transcritas, preparando todo o processo e executando-o com toda a nossa capacidade tecnológica, deixa espaço para a criação e o engenho e, acima de tudo, para a enorme satisfação de o conseguirmos! Damos por nós no meio da azáfama e do cuidado posto em termos algo para provarmos e que seria o mesmíssimo que os monges e os seus convidados e visitas provavam no século dezassete. Não se surpreendam se ao fim de umas quantas experiências bem-sucedidas – que o irão ser, basta a das ameijas: “de molho afogando h~ua pouca de cebola com coentros, e algua salsa, picados em azeite, e depois temperadas com vinagre, gengibre, bem de pimenta, acrescentando com agoa delas, e seu asafrão no cabo” – e depois de ganharem o hábito de usar um ovo a flutuar para medir a salmoura de curar as azeitonas, recorrendo ao glossário que as autoras prepararam para decifrar palavras incomuns, familiarizando-se tu-cá-tu-lá com o livro e com as horas dos monges, comecem a sentir um enorme desejo, uma vontade interior de, a par do alimento do corpo, quererem saciar a alma, ou seja, a vontade de ir para um Convento!