Tenho poucas dúvidas que a culinária, ou gastronomia, se define essencialmente pela mais sublime das artes de cuidar. E, talvez por isso, lhe emprestamos toda a nossa emoção que se projecta por intuirmos que o alimento está associado à vida e que ao cuidarmos de alguém através do alimento partilhamos, também nós, o acto mágico da criação.
Tudo começa antes do tudo – na terra que também é mãe e cuidadora e que nos aguarda com promessas de abundância. Ali plantamos ou criamos, ali regamos e cuidamos, ali colhemos e recebemos.
E fazemos tudo isso no ritmo certo e sem hipocrisias que não cabem na simplicidade da vida. Se matamos, contritos, a galinha velha para celebrarmos a festa do filho mais novo não deixa de se cumprir a natureza e o seu ritmo e, talvez principalmente, o seu equilíbrio sem o qual os ecossistemas não se desenvolvem ou prosperam.
O ponto que hoje vos trago (devia dizer pontinho) é que os verdadeiros apaixonados pelo alimento emocionam-se de tal forma que não conseguem falar de culinária ou de comida sem acolitarem cada espécie citada com o sufixo “inho”.
Hoje temos umas costelinhas de babar…
Mais um bocadinho de arrozinho? Vai uma pinguinha?
E de “inho” em “inho” lá nos vão mimando com os petisquinhos que nos preparam com tanto carinho. Aliás o carinho é mesmo o “inho” principal da culinária por ser nessa amorável entrega que se define a tal arte de cuidar que nele se consubstancia.
O meu querido irmão Miguel, mano velho como eu carinhosamente lhe chamo, vive o alimento como ninguém. Julgo que se deita a programar como vão ser as próximas refeições e as múltiplas tarefas que lhe estão associadas.
Divide cada refeição em 3 partes: com a sopinha fala-nos da primeira parte – aquilo que comeu na véspera: “ui o cabritinho de ontem rescendia com a batatinha nova e uns grelinhos que vinham a brilhar”; logo a seguir, no prato de substância fala do que está a comer com mesmo entusiasmo(zinho): “meu caro, estes joaquinzinhos estão de estalo e vão tão bem com o arrozinho corrido com os olhinhos da couve, bendita seja a Virgem”; Acaba na sobremesa com umas simples premonições(inhas) que fecham a terceira parte da refeição: “meninos, nem sabem, logo ao jantar para afagar o estômago tenho já preparada uma canjinha das sérias e depois, não vão acreditar – arranjei uns choquinhos com tinta que já estou a sofrer só da espera que ainda tenho antes de lhes deitar o dente”. É um homem generoso que gosta da partilha e se compraz com uma vida tranquila não muito longe de uma mesa bem posta!
E isto passa-se na maioria das famílias portuguesas. É a festa do inho que mais não representa do que o desvelo e o respeito sincero que dedicamos à comida e aos deleites que ela nos traz.
Temos a sorte de ter nascido em Portugal. Num Portugal de terra e de mar. Num Portugal de biodiversidade e de imensos terroirs. Num Portugal de vibrantes padrões alimentares de que a dieta mediterrânica e atlântica são belíssimas expressões. Mas também, num Portugal pobre e engenhoso que tinha de fazer muito de pouco, num receituário de enorme fantasia, mas ao mesmo tempo cheio de coisas simples e verdadeiras.
A comidinha de verdade dos portugueses começa a ganhar mundo. Porque foi do mundo que tanto trouxemos e foi para o mundo que tanto levamos, num melting de culturas e sabores de que somos principais protagonistas.
Fico a lembrar-me dos inhos da nossa vida. Da expressão de felicidade que todos temos quando, perto da hora de refeição, nos aproximamos da fonte segura do alimento que é a cozinha ou a panela grande de onde escapam aromas imortais. Acho que todos nós dizemos – que cheirinho…!
Ou ainda… (o que é a memória afectiva!), dos amoráveis “caladinhos” que comíamos na escola em Matosinhos. Os “caladinhos”, uns cones de bolacha e canela a transbordar de creme pasteleiro, eram os únicos que nos sossegavam. Que nos punham caladinhos e de bem com a vida e com os carinhos que o alimento nos dá.
Uma saúde ao inho que há dentro de nós e nos faz sentir, de “caladinho” em punho, eternamente meninos!
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