A lenda dos Suspiros de Soure

A experimentar

Vou contar como aconteceu. Em La Motte du Caire, a aldeia na Provença onde costumo passar férias e um dia espero desfrutar da reforma, fomos convidados por uma vizinha para almoçar. O almoço durou quatro horas. Perdão, cinco. A ideia era ser “uma refeição simples”, mas o conceito de simplicidade encontra sempre em França uma forma de se complicar. Não creio que se coma melhor lá do que em Portugal, mas é verdade que ainda se come (mesmo em famílias modestas) mais refinado, segundo um princípio que vem de há séculos: já que o país é fanaticamente republicano, ao menos que a mesa seja um banquete real. Se não me engano, houve sete pratos. Umas entradas, com canapés de pasta de beringela e pasta de azeitona, um primeiro prato, já não me lembro de quê (mas era bom), um segundo prato, também já não lembro de quê, mas também era bom, a salada que ali usam mais a fechar que a abrir, uma tábua com mil variedades de queijo, uma peça fruta e, para doce a fechar, uns merengues feitos pela dona da casa. Bem agradáveis, mais parecido com um doce nosso conhecido do que com os famosos Calissons d’Aix.

– Parabéns – elogiei. – São quase tão bons como os Suspiros de Soure!

Aí, até então folgazões, os franceses nossos anfitriões franziram o sobrolho:

– Susspirrôs?

Expliquei. Em francês dizem ‘meringues’. Em Portugal, como somos mais poéticos, dizemos ‘suspiros’.

– Soupirs?

– Et oui. Soupirs. Suspiros.

Quiseram saber se isso tinha alguma coisa a ver com a nossa famosa ‘Saudadê’ e eu disse que por acaso talvez não. Para mim, tinha mais a ver com o som de alguém que está a ter prazer.

Eles riram, cúmplices. Não percebi porquê.

Depois percebi. Os franceses, sempre marotos e brejeiros.

Porque já estávamos bem comidos e bem bebidos, entrámos então numa discussão galante sobre a íntima e antiga relação entre poesia e gastronomia. Conheço poucos povos que tenham tanto o hábito de, à mesa, falar de mesa como o francês e o português.

Estavam fascinados. E, ao mesmo tempo, um bocadito envergonhados. Então os portugueses diziam ‘Suspiros’, palavra tão subtil quão sugestiva, e eles apenas referiam as matérias-primas de que era feito o pequeno bolo de claras em castela e açúcar?

Tentei acalmar os meus amigos e anfitriões, até porque deprimir com a barriga cheia nunca é boa ideia. Escolhi o meu tom mais pedagógico e paternal:

– Sabem, nós em Portugal temos uma estranha tendência para associar a comida às emoções. E, mais ainda, a histórias.

Eles quiseram saber: que tipo de histórias? Não poderia eu contar uma? Eu não queria, de facto, até porque nenhuma me ocorria. Insistiram. Então, fiz o que os homens fazem há anos na cozinha, inventei:

– Sabem, nós tínhamos em tempos idos uma rainha que hoje é conhecida como a Rainha Santa, pois era tão bondosa que o povo lhe atribuía milagres. Há um que talvez até conheçam, o das Rosas. Não?

Não, não conheciam.

– Esse foi com pão. O rei desconfiava de que ela andava a dar pão aos pobres e um dia apanhou-a em flagrante e perguntou o que levava ali no regaço, ao que ela respondeu: “São rosas, senhor.” E não é que o pão se tinha transformado em rosas?

Os meus anfitriões fizeram o adequado ar de espanto, mas não interromperam. Queriam mesmo saber por que motivo os suspiros se chamavam suspiros.

– Acontece que a rainha tinha uma jovem aia que, secretamente, se tinha enamorado por um também jovem pajem. Naquele tempo, Coimbra já não era bem a capital de Portugal, mas a rainha santa fazia questão de por lá pernoitar sempre que podia. Um dia chegou aos ouvidos da rainha que a sua aia andava a amancebar-se com um moço. Primeiro a rainha não quis ligar aos rumores, mulher séria não tem ouvidos, mas quando se tornaram mais fortes e verificou que, de facto, a aia se andava a ausentar com frequência, percebeu que tinha de fazer algo. Não por desaprovar o comportamento da jovem aia. Afinal, o amor verdadeiro é sempre casto, mesmo quando carnal e fora do casamento…

Os meus anfitriões sorriram com um ar aprovador. Afinal foi a França (vem nos livros) que inventou o sexo fora do casamento. Prossegui:

– O que a rainha receava era que a sua aia fosse detida por outros menos benévolos e castigada de forma severa. Ao pajem aconteceria ainda pior. A rainha quis saber em que zona da cidade corria que o incauto parzinho se encontrava. Ah, não era em Coimbra, mas era perto? Ainda por cima um foral com ligação aos Cavaleiros de Cristo? E como se chamava a vila? Soure?

Soure. Aparentemente, era lá que, com a benesse dos Templários, o jovem casal se encontrava.

Os meus franceses estavam encantados. Toda a gente adora Templários. Ainda hoje o que mais há é romances e lendas sobre essa misteriosa Ordem.

– A rainha teve um pressentimento. Era urgente socorrer o par de amorosos, antes que os inquisidores lá chegassem.

(Aqui exagerei, a Inquisição só mais tarde entraria em Portugal, mas para quê estragar uma boa história com o rigor frio dos factos?)

– A rainha pôs-se a caminho, na sua carruagem. Felizmente o palafreneiro conhecia um atalho, como era do Paleão, que ficava perto de Soure.

Chegaram tarde demais. Já os verdugos, sempre ciumentos da felicidade alheia, cercavam a casa onde o ilegal casal estaria a ter os seus encontros de amor em improvisada alcova.

– Mas rainha é rainha. E os punidores tiveram de se inclinar à presença de Sua Majestade. “Que fazeis vós aqui?”, indignou-se ela, com altiva rispidez. “Acaso espiais minha aia favorita? Pode saber-se o que tendes contra ela?” Os sonsos apontaram para a janela aberta do primeiro andar. Era inegável que dela vinham uns dengosos e arfantes gemidos, a par com uma toada rítmica de madeira contra parede.

Os meus vizinhos franceses estavam suspensos. Tudo parecia perdido. E agora?

– A rainha admoestou: “Sabeis quão vil é a calúnia?” E, antes que pudessem reagir, passou-lhes à frente e abriu a porta. “Aguardem aqui. Eu já vos mostro o que a minha inocente aia está a fazer.”

Quando os moralistas da corte entraram casa adentro, minutos depois, tiveram uma amarga desilusão. A aia e o pajem estavam apenas, é certo que transpirados, a tirar do forno uns estranhos doces brancos em forma de corrupio. E a Rainha Santa, triunfante: “Provai. Vinde, vinde, provai estes suspiros. E dizei-me se são, ou não são, de suspirar por mais?”

Rui Zink Escritor

 

 

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