Papéis estupendos e deliciosos

A experimentar

“Rosquilhas de aguardente – Um arrátel de assucar, 20 ovos tiram-se-lhe dez claras tudo vem batido até que a massa esteja vem grossa depois deita-se na masseira deitando-se-lhe um quarteirão de aguardente para lavar o tacho e ao amassar deita-se-lhe meio arrátel de manteiga de porco mas que seja vem quente”.

Não sei quem foi a autora. Este pequeno parágrafo está com muitos outros numa folha de papel escurecida pelo tempo e pelo uso em cozinhas antigas, manchas a fazerem-lhe decoração de saboroso currículo de trabalho. Manuseamos tais páginas respeitando o tacto que tiveram de cozinheiras ancestrais e curiosas na sua leitura, de certeza copiadas mais vezes, repetidas ao ouvido de aprendizes e de donas de casa. Estas folhas estariam numa gaveta ou numa caixa do escano ou entaladas num maço que apanhava o fumo e os vapores da cozinha. Apesar de sabidas de cor, serviriam de cábula às iniciantes ou para desfazer teimas e, seguramente, para emprestar às visitas que, da cerimónia fazia parte, pediam para ter a receita do que acabavam de provar.

Aromáticas da aguardente e da canela, ao cozinharem-se e ao trincarem-se, as rosquilhas eram essenciais numa viagem e havia-as guardadas numa terrina, num armário, à espera de visitas inesperadas. Faziam-se fritas em azeite ou, então, iam ao forno num tabuleiro polvilhado, estas mais próprias para poderem ser embebidas em vinho do porto ou da madeira. Como muitas das receitas antigas de bolachas e biscoitos, os amarantinos e os económicos, os cabacos, as broas de amêndoa, as rosquilhas de viúva, todos eles eram munições de boca fáceis de transportar em saquinhos de linho ou cestinhos de verga, úteis para quebrar o jejum e para preencher as horas nas diligências, a pé ou a cavalo, nos comboios ou nos barcos. Nas festas e nos bailes, uma rosquilha a servir de mata-borrão a uma taça de champagne era – e é! – uma forma instantânea de recuperar o fôlego para mais uns quantos rodopios aos saltos.

É com um enorme respeito que se devem coleccionar e preservar bem estas folhas manuscritas, autenticamente desenhadas em escrita cursiva com aparo molhado em tinteiro,  com uma letra que envergonharia as letras de hoje, caligrafia de estilo aprendido e tão treinado quanto as receitas sobre que informa, protegendo-as agora eu em micas mas, sempre que se retiram da transparência para se lhes examinar qualquer pormenor à lupa, libertam o seu cheiro antigo em que se adivinham canelas, açúcar queimado, por vezes pimentas e até louro – algumas com cânforas e alfazemas do tempo guardado e resguardo das traças. Palpitam de vida e inspiram azáfama. O núcleo mais antigo de papéis veio-nos parar às mãos no lote dos “que já ninguém quer”, nas palavras da nossa divertida prima Batija, que fez comigo o rebusco final em casa das Tias Sousas, no tempo da outra senhora, antes de ser posta à venda, e me perguntou se eu não quereria escolher algum papel que ainda se aproveitasse, daquele pequeno monte no chão do fundo do corredor, a casa estava já sem móveis – fiquei com todos! Umas dezenas de jornais velhos, partituras para piano com capas de Belle Époque, algumas cosidas com fios de seda porque o uso lhes gastara e rasgara o vinco (imagina-se a cena da pianista e duma ou dum ajudante a dobrar e a mudar-lhe a partitura da valsa para se manter o ritmo da dança, a provocar-lhe o frisson pelo gesto de galanteio…), e umas folhas desirmanadas de velhos livros de receitas. Esta era uma delas. Toucinhos do Céu, pudins de pão, de batata, de laranja, pudim gelado em banho-maria, velos de raiba, pudinzinhos dos Remédios, trouxas, castanhas de doces de limas, ameixas e damascos, broas, morcelas pretas e morcelas de lombo, pastéis de Lamego, calda de perdiz, celestes, tigelinhas de Londres, esquecidas de Coimbra, doces das Pedrosas, bolos do Paraíso, francelinos, caracóis, esses, Manuéis, Napolitanos, suspiros de freira, doces de ovos, … muitos mais! Numa das sequências há, à margem, em letras mais pequenas, “Adosinda de Sousa”, o que bate certo com a nossa velhinha tia-avó (então envelhecia-se muito depressa) que ainda conheci e que morreu em 1970 antes de fazer 93 anos: muito culta e inteligente, era a humildade em pessoa, letra a sumir-se, mas muito perfeita, muito correcta.

Lidas hoje, as unidades de medida dessas receitas são notáveis: arráteis, quarteirões, vintenas, meios-tostões, quartilhos, quartas e onças, assim como as designações de peneira de cabelo, água de flor, manteiga do norte…

Podemos pensar estarmos muito longe do tempo destas folhas, com antiguidade mais do que centenária, mas, lendo-as bem e olhando os escaparates de muitas pastelarias, está bem vivo e junto de nós. Com menos coisas pisadas em almofariz ou tendidas com o rolo da massa, porque os electrodomésticos vieram mudar imenso os procedimentos; com muito menos coisas em unidades misteriosas, porque o sistema métrico veio pôr tudo em grama e kilo; com menos alguns dos ingredientes, porque o conhecimento dietético relacionado com a saúde veio impor novas regras. Mas, linha a linha e página a página, ao lerem-se os enunciados de quantidades, dos processos, das recomendações para a massa não ficar grossa ou para o tempo de espera até cozer, arrefecer, ou passar, simplesmente, até poderem consumir-se, ao ler-se todo o empenho que esteve nas descrições e ao sentir-se que havia experiência e amor em toda a actividade da cozinha, é impossível não nos comovermos com a vinda até nós, a 2023, de toda esta informação em suporte papel, desafiando anos e anos, trazendo conhecimento, dando vontade de desatar a experimentar e a provar todas e cada uma das receitas.

Já agora, um arrátel são 459 grama, hoje. Um arrátel valia catorze a dezasseis onças, conforme as zonas do nosso país. O “nosso”, daqui de casa, valia 14 e, por isso, uma onça destas receitas vale 33 grama, tudo aproximadamente, se quiserem experimentar, não se precisa de balança de precisão – precisa-se de sensibilidade culinária, o que não é pouco!

Impossível não terminar com a receita de cup, está-se mesmo a ver os convidados da festa a remexê-lo com uma concha de prata e a vertê-lo para as taças, senhoras a espreitar o colorido da terrina, música de gramofone de manivela, toilettes em esplendor, trincadelas num biscoito com a mão esquerda enquanto a direita, segurando com elegância no cristal, o levava aos lábios na pose estudada e treinada para depois surgir a frase, olhos o fitar o alvo, tom sedutor, “uma delícia estupenda! O que levou?”: 3 garrafas de vinho branco, 3 litros de água mineral bem gasosa, 1 garrafa de champagne, 1 cálice de cognac, 300 gramas de açúcar, variedade de frutas aromáticas (laranja, morangos, ananaz, etc.) cortada em bocadinhos e gelo cortado de igual modo. Junta-se tudo durante duas horas, excepto o champagne, que é na ocasião.


Manuel Cardoso
Consultor e escritor

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