Culto ao Bacalhau | O último selvagem

A experimentar

“Os detalhes são das coisas que mais importam. Eles criam profundidade, e a profundidade cria autenticidade.” Neil Blumenthal

Hoje falo-vos do “pão das marés”, do “fiel amigo”, “do ouro branco”, do bacalhau. O bacalhau é hoje em dia comido de mil e uma maneiras, do Círculo Polar Ártico à África subsahariana, mas até Mark Kurlansky publicar o livro Bacalhau. A História do Peixe que Mudou o Mundo em 1900, ninguém o celebrava com a importância que merecia. Este livro dá-nos 600 anos de receitas com bacalhau, algumas delas muito estranhas, de que é exemplo um bacalhau seco norueguês embebido em … lixívia. Brinda-nos também com histórias curiosas, intrigantes e por vezes divertidas, como o debate nacional (que quase criou uma guerra civil ) ocorrido na Islândia sobre … comer cabeças de bacalhau.

Culto ao Bacalhau Em 1914, um proeminente banqueiro islandês submeteu a ingestão de cabeças de bacalhau a uma análise económica (com base numa fórmula matemática que levava em consideração o tempo de alimentação e a quantidade de nutrientes) chegando à conclusão que a prática era nutricionalmente ineficiente. Do outro lado da barricada encontrava-se o director da biblioteca nacional daquele país, que rebateu com um tratado sobre os valores sociais do consumo de cabeças de bacalhau e uma antiga crença islandesa de que esse consumo aumentava a inteligência. Mas não é apenas na sua terra que o bacalhau é rei. Os vikings (que o aprenderam a pescar, em abundância, desde o século IX nos mares frios dos países nórdicos) deliciaram-se com o bacalhau enquanto aterrorizaram a Europa e navegavam em direcção à América (há cada vez mais evidências que terá sido o viking  Leif Erikssonfoi,  conhecido como Leif, o Sortudo, o primeiro europeu a pisar a América do Norte, propulsionado a bacalhau, chegando ali cerca de 500 anos antes de Cristóvão Colombo partir de Espanha).

Culto ao Bacalhau  Os escravos nas Índias Ocidentais comiam bacalhau salgado rico em proteínas que lhes garantiu a sobrevivência. Os pescadores da Nova Inglaterra transformaram-se numa “aristocracia do bacalhau” bastante rica devido aos lucros obtidos na sua comercialização. E ainda hoje, enquanto o bacalhau luta para sobreviver, os nigerianos são apaixonados pela carne delicada da sua cabeça curada. Esta relação entre humanos e bacalhau dura, portanto, há mais de 12 séculos e fez com que o peixe se alterasse geneticamente.  Um estudo publicado na prestigiada revista Science provou que o bacalhau se começou a reproduzir mais cedo de modo a se adaptar ao ciclo de pesca por parte dos humanos. É quase como se o bacalhau tivesse pensado enquanto espécie “se nos querem pescar a partir de um certo tamanho, vamos garantir descendência antes de atingir esse tamanho”. Até com a falta de bacalhau, o bacalhau nos parece querer ajudar 😉

Culto ao Bacalhau A relação (quase umbilical) deste peixe com Portugal inicia-se em 1500, através dos acordos comerciais com Inglaterra que envolviam a troca de sal por bacalhau. 50 anos depois, durante uma expedição dos Descobrimentos Portugueses a caminho da Índia, a Terra Nova foi descoberta (isto se as suspeitas relativas a Leif, o Sortudo não se confirmarem) e assim se inicia a pesca do bacalhau pelos portugueses. Durante muitos séculos, esse peixe foi considerado uma iguaria exclusiva da Casa Real e da aristocracia, mas no século XIX a sua popularidade estendeu-se por todo o país devido à sua facilidade de conservação e transporte.

Culto ao Bacalhau No entanto, é apenas com Salazar que o consumo de bacalhau aumenta de forma exponencial no nosso país e curiosamente … se democratiza. Até então, Portugal dependia principalmente da importação de bacalhau para suprir a procura. As empresas pesqueiras nacionais não funcionavam adequadamente, o sector era desorganizado, irregular e havia pouco investimento, o que levava a um baixo rendimento. Para reduzir a dependência externa e garantir o abastecimento alimentar do país, Salazar centralizou a organização da pesca do bacalhau no Estado, incentivando a criação de cooperativas e estabelecendo um sistema de pesca controlada. Foi assim que surgiu a famosa Campanha do Bacalhau em 1934, com o objectivo de tornar esse peixe o alimento nacional.

Culto ao Bacalhau Talvez seja esse o maior legado de Salazar, … o bacalhau 😉  1974 marca o último envio de uma frota de navios bacalhoeiros para a Terra Nova, que coincidiu com a queda da ditadura em Portugal. No entanto, até hoje, o bacalhau continua a ser muito apreciado no país, dizendo-se até que existem 1001 maneiras diferentes de o preparar. Actualmente, 70% do bacalhau consumido em Portugal é importado da Noruega e os portugueses são responsáveis por cerca de 20% da captura mundial, levando em consideração a sustentabilidade, as mudanças climáticas e a sua versatilidade gastronómica. Com toda esta bagagem histórica, o bacalhau foi-se tornando um símbolo de identidade nacional e orgulho para os portugueses, conectando-nos às nossas raízes marítimas e àquilo que de melhor oferecemos ao mundo: a epopeia dos descobrimentos. Quem se assume como uma casa especialista em bacalhau, tem de honrar todo este legado histórico, cultural e económico.

Culto ao Bacalhau Esse legado deve ajudar a moldar a gastronomia através da identidade nacional e da relação com o mar, isto e como é óbvio, sem nunca se desligar do sabor. Hoje falo-vos de um restaurante e de um Chefe, que conciliam de modo magistral história, sabor, tradição, identidade e inovação: o Culto ao Bacalhau, do Chefe Rui Martins. Foi inaugurado a 30 de Março de 2023 e está localizado no icónico mercado do Bolhão. A decoração de estilo nórdico, minimalista e tons suaves, valoriza a origem do bacalhau, que apesar da sua origem longínqua, é por todos considerado um ícone da identidade portuguesa. A proposta gastronómica assenta, portanto, em quatro pilares que defendem a sua Portugalidade, o território, produto, receituário e a cultura, expressa pelos vários métodos de conservação e assumindo o fumo como assinatura.

Culto ao Bacalhau O bacalhau ali servido é proveniente da Islândia, sendo especialmente seleccionado em sinergia com a Lugrade. Com um mínimo de 24 meses de cura, apresenta um paladar intenso e uma textura homogénea e suculenta. Da mesma forma, surgem outros produtos da selecção do chef Rui Martins, em parceria com produtores renomados, como a Casa de Santo Amaro, a Luísa Pato ou a Salmarim, tais como azeite, vinagre e flor de sal, respectivamente. Renovando o conceito de vinho da casa, é ainda possível encontrar na garrafeira do restaurante, uma selecção cuidada de cinco vinhos de Culto.

Culto ao Bacalhau A nossa visita ao Culto ao Bacalhau começou com um Bolinho de Bacalhau com Salada de Feijão Frade. O bolinho de bacalhau em dimensão generosa surge na mesa cortado a meio e com uma pincelada de manteiga de alho, após fritura em triplicado. A remoção do alho nos ingredientes do bolinho e posterior pincelada tem como objectivo evitar os aromas desagradáveis a alho tostado e aumentar a harmonia. Crocante e estaladiço por fora, aprisiona no interior um suco cremoso salivante. A salada de feijão frade que o acompanha acrescenta complexidade através do fumo que carrega. Seguiu-se Cara de Bacalhau na Brasa com Molho Verde em que a combinação do sabor defumado do bacalhau grelhado na brasa com o molho verde aromático e refrescante criou um contraste delicioso e bastante alegre. É um prato que para além do bacalhau fumado também cheira a memória e tradição.  O director da biblioteca nacional da Islândia tinha razão … que se lixe a nutrição 😉

Culto ao Bacalhau Bacalhau à Brás trouxe equilíbrio, riqueza, untuosidade, com notas salgadas, suaves e reconfortantes. O detalhe da batata finíssima e super crocante/saborosa acrescentou ao prato heterogeneidade e elegância.  Por sua vez, Bacalhau Gratinado com Gambas adquiriu uma textura macia e uma casquinha dourada e crocante no topo, que contrastou na perfeição com a suavidade da suas lascas. As gambas, por sua vez, introduziram sabores mais vincados e levemente adocicados, um toque de mar e mais uma textura. O resultado foi bastante harmonioso. Seguiu-se um dos meus favoritos (e para já o prato de peixe do ano para o blogue): Arroz de Bacalhau com Ostras. O bacalhau, com seu sabor característico e levemente salgado, formava a base de sabor do prato, para que a ostra, com mar, doçura, mineralidade e um toque metálico brilhasse. É uma criação original, sofisticada e cheia de sabor. Adoro ostras e adoro bacalhau, este prato é muito mais que a simples soma das partes.

Culto ao Bacalhau Nas sobremesas, o Mil Folhas de Bacalhau com Doce de Ovos é genial!!! Uma combinação interessante, improvável e certeira de sabores e texturas. O bacalhau salgado seco no início contrastava com o sabor adocicado e rico, com notas de baunilha do doce (quase que pareciam estar a digladiar-se pelo protagonismo no prato) mas depois ambos começaram a conversar, enobrecendo e realçando as mais valias um do outro. Uma combinação inusitada que ainda me faz salivar.

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