Já com a ruína fantástica de Castelo Melhor à vista, rumando a leste pela EN222, que se aproxima do fim, desligando o motor, se sairmos para fora do carro, ficamos captados por uma das mais misteriosas regiões de Portugal. Que nos impele a irmos deambular mais adiante, Almendra, de inequívoca sonoridade ibérica, estradas com pontos mirantes de Vilar de Amargo, Algodres, Escalhão, Figueira, da Ribeira de Aguiar, outras migalhas de casas que o foram ou ainda o são, aqui e ali, sentindo o cumprimento duma meditação e pasmo que nos magnetiza. O primeiro e precipitado sentimento de desolação, que é o que nos ocorre, dá lugar, com as horas, a uma coisa mais profunda e boa para nos questionarmos sobre pontos de partida e destinos, descobrindo que ali moram várias formas de tranquilidade. Está vincado um rio que se chama Seco e que desce ao Douro, porque ainda estamos no Douro. Horizontes amarelos fragosos nos montes, porque, apesar de tudo, estamos em Trás-os-Montes. O xisto a ceder o passo ao granito, porque, afinal, estamos na Beira. Reconhecer a vida ali, naquele silêncio desolado, é uma forma possível de aproximação ao íntimo da nossa própria vida, somos pelo menos nós quem está ali connosco.
Anteontem, no Museu do Coa, esplanada a espaços salpicada por aguaceiros mornos, no entrecortar das núvens sentia-se bem a intuição desse planalto defronte, até pela razão de que pelos copos nos foram passando os brancos Marquês de Almeida, rosés da Vinha da Urze, tintos reserva da vinha do Bispado: comemorávamos os anos do querido Amigo Celso Madeira, o melhor descritor desta paisagem porque a utiliza como sujeito, predicado e complementos nas explicações que nos conversa, demonstrando usá-la com inteligência e amor para produzir azeites e vinhos de máxima qualidade. Imprimindo um sentido profissional à sua reforma, o investimento empresarial da CARM tem sido para si a correspondência ao chamamento da terra, terra de família, dotada duma enorme capacidade de atracção e duma coincidência que considera uma dádiva: a de que nesta pequena região há as condições para a viticultura ser a base de grandes vinhos. Solo, relevo e clima. Poder fugir ao sol como estratégia da economia da água insuficiente (com calor a mais, não é a água só por si que pode valer às plantas), corresponder à ecofisiologia das variedades autóctones, permitir serem ausentes os químicos, inclusive ter vários rótulos de vinhos sem sulfitos. O modo de produção biológico é uma capacidade natural da empresa instalada nestas encostas. Tal como é natural o aroma dos vinhos da cota alta. Enraizar nos diferentes terroirs da Calabria e do Bispado, da Urze, das Marvalhas e das Verdelhas. É sensível que tudo o que faz neste rincão tão agreste e aparentemente avaro desde tempos pré-Nacionais, terra de fronteira de Portugal, disputada, administrada e povoada pelo Reino de Leão em fases da nossa primeira dinastia, posta a ferro e fogo na Restauração, mereça uma particular atitude que, a todos os títulos, é exemplar por parte de Celso Madeira: a de um profundo respeito, exercido com humildade e clarividência, afirmação de valores tradicionais de que temos a sorte e o inapagável privilégio de comungar. Familiar respeito pelos colaboradores. Profissional respeito pela empresa. Íntimo respeito pela natureza. Respeito que brota naturalmente da leitura do Primavera Silenciosa de Rachel Carson, oferecido por sua mãe, posto em execução nos critérios de produção nos terrenos e vinhas que começou a lavrar desde o tempo do seu pai: apesar de a agricultura biológica não poder alimentar o mundo, é uma obrigação moral ser praticada sempre e quando por quem o possa fazer. A agricultura não é uma mera actividade económica: é um exercício de reflexão sobre a razão de ser do mundo e da nossa relação com a sociedade e nós próprios.
A referência a Rachel Carson (e ao Primavera Silenciosa) remete-nos inevitavelmente para Bárbara Ward e René Dubos (e ao Only One Earth). Todos dotados duma enorme clarividência e precursores duma visão equilibrada do nosso lar. Todos se sentiriam muito bem se estivessem à mesa em Vilar de Amargo a provar do paté de azeitona ou de alcachofras, tomates secos e pimentos em azeite – para o prato ou numa torradinha – e dum cabrito no forno e de mais seja o que for com vinho, de que poderiam beber à vontade e sem remorsos, porque produzidos em sustentabilidade muito antes de normas e critérios.
Este pequeno planalto entre o Douro, o Coa e o Águeda, pontificado pela Marofa, estendido a sul, está num limiar entre passados difíceis, em transe de pessoas e bens, e um futuro de grandes vôos. No Museu, enchendo o peito de ar, Douro ao fundo, céu infinito, ocorreu-nos Mário de Sá-Carneiro: Um pouco mais de sol – eu era brasa,/ Um pouco mais de azul – eu era além. / Para atingir, faltou-me um golpe de asa…/ Se ao menos eu permanecesse aquém… A Celso Madeira não faltou até hoje o golpe de asa, nem permaneceu aquém. Do Sol tem feito azeite e vinho, e, do Azul, o espaço, a substância dum elevado sentido social, inspirador dos valores da empresa e das suas marcas.