Sexta e Sábado, primos entre si

A experimentar

A Mariana e eu descemos sexta-feira, tarde de trovoadas, e mudámos de claridade, rumo a sul, pelo Túnel da Gardunha. A partir do Fratel, o Alentejo desenrolou-se de memória pela estrada, esse túnel do tempo, numa sucessão rápida do Crato, Alter, Avis, Pavia, Arraiolos, iríamos ainda jantar, com a Tété, Luís e Gi, a Montemor. Esta passagem rápida, que para os iniciados se faz com Régio e Villaret e a Toada de Portalegre na cabeça, entrevendo, no sol a rasar em flashes entre os sobreiros e azinheiras, eucaliptos, pinheiros, lindas sebes de olivais e, ainda, cedros reverentes nas bermas, recortando cavalos, vacas e ovelhas aqui e ali, as pinceladas de Dordio Gomes sob um céu de fim de tempestade inglesa, sombras cada vez mais povoadas pelas fadas, santos, fantasmas e transes da História de Portugal, a cintilar nos nomes e na água das folhas, no espelho do Maranhão, esta passagem rápida, dizia, deixou-nos quase sem fôlego nas quatro horas e meia desde nossa casa até ao Casal de Santa Maria, nosso destino num desvio da Nacional 2. O velho Lancia, na reserva. Valeu que, à nossa espera, estavam um branco da Ravasqueira com pão, queijo e camarão gelado, e um tinto da Borgonha de que não sobrou gota ao trincarmos uns hambúrgueres de carne a sério, que a Teté sabe temperar como ninguém. Grandes abraços, conversa de pôr cinco meses em dia, as senhoras na canasta noite adiante.

O Alentejo faz parte do húmus da nossa vida e, por isso, é instintivo que,  pisarmos nas calçadas, aspirarmos o ar da manhã nas ruas de Montemor, observarmos e ouvirmos gestos, palavras e atitudes, tudo isso se faz num processo de absorção essencial a nós próprios: cada molécula, cada som e cada cor encontrando depois, dentro do nosso ser, para uso imediato ou para mais tarde, um lugar de aconchego e de fruição da felicidade. Don’t you know you’re Life itself – ainda por cima, Bowie a cantar-me mentalmente durante toda a manhã, desde que no som espectacular do carro espectacular do Luís, tinha surgido do nada (do nada, não, já que tínhamos acabado de comprar bolos na atmosfera culinária especial da Estudantil!) a Absolute Beginners que, nas minhas momentâneas obsessões, anda sempre a par da Wild is the Wind.

Não estava o sol esmagador do sul e, quer as núvens quer a brisa de cheiro a húmido dos aguaceiros da véspera, permitiam um deambular sem termos de andar de olhos no chão, mais despertos para a missão de arranjarmos almoço. Este foi prospectado numa churrasqueira tão discreta quão saborosa, disfarçadamente anunciada como pizzaria, camuflando de saladas, no menu, aqueles acepipes de diferentes constelações que, só por si, justificam os quilómetros para ir ao take-away: a de feijão frade, a de grão com bacalhau, a de orelha, a de polvo! Não vou elencar aqui os pratos que podem ser acompanhados com arrozes de feijão, de tomate, de coisas que apetece pedir para irmos experimentando à colherada, ao mesmo tempo que pegamos numa patanisca e ainda estendemos a mão para dar uma garfada numa travessa onde estavam moelas de tomatada, sendo postos fora por comportamento glutão, boca cheia de azeitonas! Não, não nos aconteceu nada disso, infelizmente, não provámos nada in situ. Uma fila ordeira aguardava o despacho, tudo mantido em boa ordem pela Margarida, aliás, em muito boa ordem pela Margarida que, atenta aos clientes, a todos faz a consideração de esperarem o menos possível, o que é uma forma de zelar pela nossa saúde e apetite e nos poupar a suplícios de Tântalo. E é uma pizzaria-churrasqueira com, ainda por cima, uma característica que não é de somenos: cheira muito bem. Nada de ar enjoativo a fritos, nem a vapores pesados, nem a requentado. Veio até nós o do leitão assado que encomendáramos, acompanhou-nos no carro, ao almoço e ainda agora, passados dias, me parece andar aqui pelo écran do computador: será alguma forma intrometida de IA a fazer marketing inovador?!

A música desse almoço foi Tina Turner, impossível não ser. E zarpámos logo a seguir, voando sobre os arrozais do Sorraia e atravessando o Tejo pela A10, contornando Lisboa, por que intransitável nessa tarde, indo ter a Albarraque, a casa da Joca e do João, para uma Salada de Primos.

Que é uma Salada de Primos? É uma reunião em que todos usam avental, nove formaram três equipas de três, outros três foram júri. Numa mesa, estava um colorido de ingredientes e temperos para saladas em taças, frascos e jarrinhas com ramalhetes de salsa, coentros e cebolinho. Uma ampulheta (sic) mediu meia hora. Meia hora depois, as equipas apresentaram ao júri uma salada feita por cada uma. Comeram-se todas, cumprindo um dos propósitos do jantar, cuja ementa era essa e mais umas tirinhas de carne grelhadas na chapa. E salmão marinado. E sobremesas. E um vinho do Pocinho que do início ao fim colocou em grande nível o nosso encontro. O outro dos propósitos era o de conversarmos e celebrarmos a matemática. Os presentes éramos todos primos entre si, alguns irmãos, alguns consortes. Com um aglutinador comum: o da nossa amizade. Apesar das zangas de vez em quando, apesar das distâncias, apesar de tudo. I tell you we’re rolling, rolling, rolling on the river…  Para primos entre si poderá haver só um número comum – mas será sempre esse o mais importante. Matematicamente. Familiarmente.


Manuel Cardoso
Consultor e escritor

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