Há seres vivos que nascem, crescem, multiplicam-se, morrem, comem-se, saboreiam-se, discutem-se e reinventam-se! Com uma mortalidade afamada e ao sabor de modas e costumes, com honras de, apurados numa panela, serem escolhidos para estarem presentes em momentos de celebração ou de sustento precioso do dia a dia. Chegam a ser fonte de eloquência e de motivo de erudição. Foi o caso duma lustrosa Argyrosomus regius, familiar e saborosamente conhecida como corvina, saída do Atlântico com 6 kg e, via A1, A41, A42, A11, A7, subindo de Basto para o Barroso, chegando ao Gerês, aportou em postas que, tendo-se optado por não ser feitas ceviche, foram envoltas num refogado aromático de cebola, tomate e pimento vermelho. Cozida em pouco mais de dez minutos, mas um pouco mais porque ali em Pitões das Júnias a água ferve apenas a cerca de 95°C por causa da altitude e da correspondente menor pressão atmosférica, a Margarida e o Miguel Guimarães estiveram pacientemente a tirar-lhe as espinhas e demais peças esqueléticas porque destas fizeram ainda um caldo notável! E estiveram-lhe a preparar as febras: misturadas num arroz propositadamente au point para receber tão especial conduto, o resultado foi tal que, durante todo o jantar, uma grande devoção imbuiu a conversa em que discutimos a liberdade, a verdade, a arte, a vida. Houve um ponto unânime entre todos nós: o de que o arroz de corvina estava mais do que excelente. Estou a ser injusto, houve mais pontos unânimes: o do vintage Dalva a acompanhar o queijo curado Quinta Vila dos Reis. Ligaram soberbamente e ligaram-se também aos nossos pontos de vista. Com deliciosa compota de mirtilos. Opiniões diferentes, só na filosofia. Uma mistura de livre-arbítrio, de diferentes formas de atingir a verdade (como é carácter da arte e da literatura que é arte), das imensas atitudes do homem, como ser que nasce, cresce, vive e morre, agindo e pensando. Toda a estética daquela nossa discussão teve o lastro seguro do arroz de corvina. Sendo tão bom, qualquer discordância só poderia ser, também ela, boa.
Estar à mesa é um acto de civilização. Que não será por acaso. O facto de termos tão ocupados então os nossos demais sentidos, do olfacto, do gosto, do tacto, da visão, entretidos a discernir toda a informação captada e a integrá-la, conjuntamente com os movimentos musculares para se levarem as garfadas e os copos à boca, cheirar, saborear, mastigar e engolir, liberta para uma especial missão os nossos ouvidos: essenciais para depois se entender. Borges dizia que os ouvidos, esses sim, são o sentido fundamental para se perceberem as cores do crepúsculo ou dos amanheceres, se assistir ao arranjar duma mulher para dançar um tango, para se evitarem sofismas e se compreender, em toda a sua extensão platónica, a mais profunda declaração de amor. Deve ser por isso que há tantos convites para jantar como prelúdio duma noite ou duma vida de amor. E que é à mesa, com copos, acepipes e ingredientes, que se fazem os mais promissores acordos e tratos. Aquela corvina cumpriu muito mais do que suprir a necessidade alimentar do nosso grupo: tendo sido pensada, ao ser comprada numa grande superfície comercial de Lisboa, como razão de ser dum almoço ou dum jantar, acabou transformada num elemento de deleite. Por que foi muito bem cozinhada! Com arte. Se estivesse estragada, teria sido o tema da conversa e de desculpas, seria agora uma memória desagradável e para se remeter ao esquecimento. Mas aconteceu, precisamente, o contrário. E comer bom peixe selvagem é, cada vez mais, um privilégio raro.
Se raro foi esse jantar, pela ementa, pela variedade do pensamento, raro o foi também pelo local, mergulhados como estávamos no ambiente da Anonyma Arte de Pitões das Júnias. É claro que os artistas não são anónimos, mas pode ficar anónima a sua criação. Entre todos os pratos e receitas existentes, os mais comuns e notáveis são anónimos e não será por isso que deixarão de ser saborosos. Uma cozinha de autor também pode ser excelente, mas se estivéssemos a comer um determinado prato feito por um desses chefs extraordinários, se não soubéssemos o nome do seu cozinheiro, por acaso o prato deixaria de saber tão bem? E não será que, desconhecendo em absoluto o nome do autor, muitas vezes esse prato ganha pelo seu anonimato? O xadrez de S. Rosendo, o Santo de Pitões, talhado em quartzo no Egipto ou em Bagad por um artesão perito, mas anónimo, não é nem mais nem menos precioso por isto. Pode parecer uma forma de desumanidade, mas desligar uma obra de arte do seu artista não sepulta na obscuridade o artista: cria vontade de descoberta do que ou de quem estará por detrás desse anonimato. Dá que pensar. Se, para alguns, as grandes obras de arte e de descoberta da civilização são, de facto, anónimas, não é por isso que deixam de existir, de ter a sua perfeição e beleza, o seu engenho e utilidade. O anonimato é uma concepção teórica e não o significado de geração espontânea. Nenhuma escultura se forma por si própria, nenhuma pintura, nenhum livro, nenhum poema se escreve e edita. Houve, há e haverá, sempre, um autor. Poder-se-á considerar anónimo um poema escrito pela Inteligência Artificial? Não sabemos responder bem a isto… Há um autor, mesmo para as pareidolias, criação da imaginação dum observador ou, por limite ou no princípio, pelo Verbo, Autor dos autores. Aberta que está, hoje em dia, a discussão sobre Inteligência Artificial, que opinião esta emitirá sobre o anonimato da Arte ou sobre o sabor dum arroz de corvina?
A casa está toda ela impregnada de arte, enraizada em arte, cercada de arte espalhada pela encosta, pelas pessoas, pela intenção de ali se desenvolver um hub de arte anónima. Que já existe. Com génio. Estava céu de estrelas.