Estamos numa fila de automóveis que, impacientemente, respeita um sinal vermelho. O semáforo, finalmente, muda para o verde, e todos os carros (re)iniciam a marcha. Bem, na verdade, todos não. Um deles permanece parado, bloqueando todos aqueles que se encontravam na faixa do meio. A que se devia essa paragem? A uma avaria? A uma mulher que não acertava com o ponto de embraiagem? (:P) Falta de combustível?
Essas teorias são desmentidas através de um grito, que repetia tão incessante quanto apavorantemente as mesmas três palavras: ‘‘Eu estou cego.” Perturbado e sem perceber o que lhe havia acontecido, o homem cego é acompanhado até sua casa por um estranho (aparentemente) gentil. O que o cego não sabia é que esse “bom samaritano” é na realidade um ladrão de carros. Depois de ter deixado o cego em sua casa, ele foge com o seu carro. O roubo mais fácil da vida do ladrão.
O carma não demora muito em se manifestar de modo exuberante. Pouco tempo depois, também o ladrão fica cego. Mas que raio é que se passará aqui? O primeiro cego desta história consulta um oftalmologista. Diz-lhe que a sua cegueira não é escura, mas antes um branco brilhante e impenetrável. O oftalmologista examina cuidadosamente os olhos desse homem, mas não encontra degenerações, sinais de doença ou lesões. Intrigado com este estranho caso, o médico passa a noite a ler livros sobre medicina, na tentativa de encontrar uma explicação para aquela patologia desconcertante.
Mal sabia ele que a última coisa que veria, seriam as suas próprias mãos contra as lombadas dos livros. Depois do primeiro cego, do ladrão e do médico, a cegueira capturou a menina dos óculos escuros, o menino estrábico, o velho e toda a cidade. O governo toma então medidas para travar o contágio, conhecido como o “mal branco”. Aqueles que já estão cegos e aqueles que tiveram contacto com eles são reunidos e conduzidos a um asilo psiquiátrico abandonado na periferia da cidade.
Entre os primeiros internados estão o médico e a mentirosa da sua esposa. Esta mentiu para ficar perto do marido. Afirma que contraiu a cegueira branca, mas na verdade, é a única que não perde a visão. Porque terá sido ela poupada? À medida que o número de cegos aumenta, as condições do asilo deterioram-se. Não há comida suficiente: uns comem mais do que sua parte, outros passam fome.
Também não há assistência médica. Qualquer tentativa de deixar o asilo é recebida com força letal por parte dos soldados, que impelidos pelo medo de também eles sucumbirem à cegueira, perdem a humanidade que ainda lhes restava. O asilo torna-se mais um campo de concentração do que um hospital. O pavor é tanto, que entre os militares há quem sugira que seria mais simples matar todos os cegos. Entretanto chegam novos cegos ao asilo…
Com eles trazem relatos do mundo exterior: tumultos, acidentes rodoviários e aviões que se despenham. Com o tempo, a vida no hospital degenera numa luta hobbesiana pelo poder e pela sobrevivência: terror cego, ódio cego, mas também – pois Saramago é um dos escritores mais apaixonados – amor cego.
Numa das passagens do livro “Ensaio sobre a cegueira”, a esposa do médico passeia pela enfermaria completamente lotada, já em plena noite. Repara então em dois jovens recém-chegados entregues aos prazeres carnais por entre a imundície que pincelava o chão. Passados uns minutos (se este casal fosse de Guimarães Saramago teria de alterar o texto para “passadas umas horas” :P) o cego e a cega adormeceram, separados, no entanto, um deitado ao lado do outro, de mãos dadas.
Eram realmente jovens, daquela juventude bonita que por vezes quase que nos irrita. Talvez fossem namorados que foram ao cinema e que ficaram cegos enquanto assistiam a um filme, ou então, talvez uma coincidência milagrosa os tenha reunido naquele lugar sombrio. Mas, se apenas se tivessem conhecido ali, como se apaixonaram sem se olharem? Outro escritor, Antoine de Saint-Exupéry, oferece-nos a resposta através do Princepezinho, “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível para os olhos”.
Assim, e apesar de Saramago submeter todos os seus personagens a uma série de provações desanimadoras decorrentes de premissas essencialmente pessimistas (uma pandemia, o possível fim do mundo, uma sociedade tão egoísta ao ponto de se tornar suicida), o brilhante Nobel português também nos oferece algumas armas para sobrevivermos enquanto comunidade: a inteligência, a esperança, a compaixão, a moral e o amor.
Quanto a mim, a parte mais bonita do livro e que me levou a escolhe-lo para vos introduzir a critica relativa ao restaurante A Cozinha por António Loureiro, tem a ver não só com o modo muito subtil como Saramago decide abordar as questões de familiaridade, pertença e identidade, mas também com o facto de que se quisermos transmitir todas essas “nossas coisas” a alguém, deveríamos usar narrativas literárias, e consequentemente a arte, para nos fazermos ouvir.
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