O Ramadão de Sahima é uma Bênção

A experimentar

A vencedora do Masterchef Portugal abriu as portas de casa ao crítico Ricardo Dias Felner para celebrar o iftar árabe, a refeição ao final de um dia de jejum. Uma benção deliciosa.

Desde há dois meses que Sahima Hajat não pensa noutra coisa. Abrir um restaurante tornou-se um sonho e um desígnio. “Passo noites acordada a pensar nisso”, diz, já depois de servir a sobremesa, um pudim com massa filó, ovos, natas e pistáchio. Na sua cabeça, já está quase tudo definido. Quer uma sala limpa, branca, de linhas simples. E quer um grande tabuleiro para ir à mesa, cheio de pratos e pratinhos. “Eu gostava assim para mim, se fosse eu o cliente, para comer com a família e amigos.”

Os seus olhos brilham e tem o mesmo sorriso sereno que conquistou os portugueses. Em Fevereiro, Sahima pulverizou toda a concorrência do concurso Masterchef, transmitido na RTP1, com uma cozinha indiana subtil, fina, criativa, e uma postura tranquila e humilde. Para quem a via de fora, parecia imperturbável e confiante, como se estivesse segura do seu destino, ganhasse ou perdesse. Como se tivesse tudo controlado.

Na sua casa, não é diferente. Quando lá chego, ela está já ao fogão, a preparar quatro pratos ao mesmo tempo e a gerir o mimo do filho mais novo, de três anos de idade (tem mais dois filhos, de 11 e 8 anos). Ora refoga a cebola, ora pega na criança ao colo, sempre sem tirar o sentido da conversa, da comida e do tempo. 

À sua frente, na bancada, o arroz basmati está de molho desde há duas horas, em água fria. A técnica é da sua sogra. Sahima não lava o arroz, ao início. Faz depois uma pré-cozedura nessa água, cinco minutos a cozer, e só depois é que lava os bagos e os volta a cozer, agora com o óleo e o sal. A ideia é o arroz ficar ligeiramente aglutinado, para embeber o molho. “Eu não quero o arroz soltinho”. 

Ao lado, uma tigela com o frango a marinar desde manhã, em iogurte e limão. E noutro bico do fogão uma panelinha com um chá preto, escuro. “Vou pôr cardamomo. Às vezes, também aromatizo com gengibre e com erva-príncipe”. Ao lado, estão os vegetais prontos para a pakora, bolinhos fritos de vegetais. O segredo está na cebola. Primeiro desidrata-se em sal, depois fica a ganhar o sabor dos temperos: curcuma, cominhos, coentros em pó, alho e piri-piri verde. No final, junta-se farinha de grão e alface, para ligar. 

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A receita é tradicional, mas Sahima está longe de querer confinar-se a manuais. De resto, entende que os muçulmanos podem ser os clientes mais complicados. “Fazem sempre melhor em casa”, ironiza, rindo-se. “Se abrisse um restaurante, seria para portugueses, com uma cozinha mais light”. 

O marido, Ismail, ouve em silêncio, só comentando quando o interpelo sobre o tema. “Estamos a medir os prós e os contras. A analisar. A restauração é uma prisão”, alerta. Sahima reconhece-o, mas espera ser possível conciliar tudo. “Hoje em dia há restaurantes que só abrem ao almoço, não há?” 

A localização já está pensada, Odivelas, perto de casa. E o espaço já existe: será uma loja propriedade do marido. “Lisboa é bom, mas é longe. Há muito trânsito. O restaurante seria uma coisa para me distrair, para os meus amigos, para pessoas de fora que quisessem vir conhecer a minha cozinha” Sobre a data, Sahima aponta para Setembro. “As pessoas estão com fome de Sahima, tenho de aproveitar”. 

Entretanto, o relógio não pára. É preciso dar atenção ao lume. A dada altura, Sahima deixa de poder atender à criança, que por ali ronda, carente. Ismail, o marido, acorre a ajudar. Mohammad, o filho mais velho, vem assistir aos últimos momentos. 

A cozinheira apressa-se mas não perde o controlo, está focada, como se estivesse outra vez numa prova cronometrada, como aqueles últimos instantes antes do fim da prova, no Masterchef. O filho diz-lhe que são 19:57, mas ela corrige-o, sem tirar os olhos do malabarismo de tachos e ingredientes. Às 20:04, os últimos pratos são levados para a mesa: “É importante que sejamos pontuais. É detestável falharmos.” Nessa altura Muhammad, mostra-me uma folha afixada na parede, onde se lê: “Horário de Jejum, 2023”. 

Ismail comenta. “A esta hora, dá-nos alguma fraqueza. Mas a Sahima não pára. Está ao rubro.” 

O banquete do iftar

Quando há dias enviara a Sahima uma mensagem auto-convidando-me para ir almoçar a sua casa, em Odivelas, ela ligou-me de volta passados poucos minutos. “Com todo o gosto. Mas sabe que estamos no período do Ramadão?”. Eu não sabia e penitenciei-me pela falha. No período do Ramadão, que dura um mês, os muçulmanos jejuam durante o dia. Sahima, 33 anos, tinha todavia um plano B: “Em vez de almoçarmos, teria todo o gosto em convidá-lo para a refeição que fazemos depois do pôr-do-sol”, sugeriu, na altura. 

Essa refeição, chamada iftar, acontece já no crepúsculo, e é um momento especial de celebração, depois do período de jejum. Todos os dias, ao longo de cerca de 15 horas, os crentes não podem ingerir alimentos, sendo que essa disciplina alimentar é acompanhada de uma maior consciência religiosa. Nesta fase, aumentam os momentos de oração, mas também os gestos de generosidade e o foco nos ensinamentos do Corão. “Receber visitas na nossa religião é uma benção. Deus escolhe as pessoas que manda para nossa casa. É bom. Diz-se que as visitas tiram as maldades que estão por acontecer”, haveria de explicar Ismail, o marido de Sahima, pondo-me mais à-vontade. 

Durante o mês do Ramadão, a família levanta-se de madrugada, ainda noite, e toma um pequeno-almoço ligeiro. Ismail mostra-me uma foto no telemóvel do que comera nessa alvorada, pouco passava das cinco da manhã — e todo ele sorri. Banana salteada em manteiga ghee, ovos mexidos e chá indiano. 

Agora, está na hora de recarregar energias. O banquete começa na sala, numa toalha posta no chão. Ismail, já está sentado como um yogini, com as pernas cruzadas. Convida-me a instalar-me ao seu lado, mas logo percebe que não tenho a sua destreza. “Se preferir vamos para a mesa.” Torço-me como posso e lá arranjo posição para atacar as tâmaras, fruta que abre sempre o iftar. A acompanhar, chá preto com leite, também ele com nota de autor. “Ao contrário do que se costuma fazer, eu fervo o chá bastante tempo, em lume brando”, explica Sahima.

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As chamuças que vão para a mesa são, todavia, receita da sua mãe. Não levam muito picante, mas têm um travo de limão que as espevita. As pakoras estão também deliciosas, com a alface a dar uma nota leve e crocante ao prato. Sahima prefere-as com ovo, mas o marido não, pelo que ela cede. Homem de negócios, Ismail também teve uma ligação à gastronomia — e a mulher orgulha-se disso: “Ele é que trouxe o kebab para Portugal, em 2000. O seu restaurante chamava-se Mk Halal. Era um fast food, mas era bom. A minha sogra cozinhava lá e fazia sempre um prato do dia”, adianta. 

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Dos confins de Moçambique para Odivelas

A sogra de Sahima é também ela craque da cozinha, dando-lhe vários conselhos. A sua aprendizagem, no entanto, começou bem antes de a conhecer, no tempo em que ainda vivia em Moçambique. Com uma história genealógica complexa (só o pai teve quatro mulheres, algo permitido pela sua religião), ao longo da conversa vai repetindo os nomes da mãe e da avó, suas grandes fontes de receituário e inspiração. 

O resto é dela. E o resto é muito. Sahima não é uma curiosa gourmet, uma diletante da cozinha. Assume-se como doméstica e cozinhar faz parte da sua rotina diária desde a adolescência. Natural de Chimoio, no centro de Moçambique, cresceu numa família de origem indiana, há muito estabelecida na antiga colónia portuguesa. Uma família gigante: “O meu pai tem oito irmãos, a minha mãe seis”.  

Mais tarde, a família foi viver para o Sul do país, na fronteira com a África do Sul. Em sua casa, cozinhava-se sobretudo o receituário indostânico, mas uma vez por mês preparava-se um prato moçambicano, como o caril de amendoim (“O amendoim é triturado com sal, cebola e tomate, mais nada; cozinha durante três horas”), ou o caril de folhas de abóbora (“Onde estão as folhas de abóbora de Portugal?”). 

Antes de ter 13 anos de idade, Sahima já ajudava na confecção da panela que ia para a mesquita local alimentar os pregadores muçulmanos, de visita à região. Os seus dias eram passados entre a loja do pai, vendedor de capulanas (panos usados pelas mulheres moçambicanas), e os fogões da casa da mãe, que vendia comida para fora. “A minha mãe vinha da Zâmbia, onde se cozinha muito bem”, concretiza. 

Primeiro foi o amor, depois Portugal

Até que Ismail apareceu na sua vida. A relação começou à distância. Ele vivia em Portugal, Sahima continuava debaixo da asa paternal. O encontro deu-se via Internet. Como a descobriu?, pergunto ao marido. Ismail não se alonga, limitando-se à máxima: “Quem tem boca vai a Roma”. E ele foi.

A dada altura, meteu-se num avião e foi ter com ela e apresentar-se à família. Faltava só convencer o pai de Sahima. “Ele foi lá para me trazer para Portugal, mas o meu pai não aceitou. Eu era a menina do papá, ele não queria que eu viesse casar a Portugal”, admite a masterchef. Ismail não guarda rancor ao sogro, que hoje lhe envia papaias do tamanho de melões e com quem se dá bem: “Compreendo-o, hoje eu tenho uma filha e sei como se sentia.” Mesmo assim, o noivado iniciou-se e, em 2010, Sahima aterrava na Portela e estabelecia-se em Odivelas, onde vive desde há 13 anos, tomando conta dos filhos e garantindo que Ismail tem o roti acabado de fazer, pela manhã. 

Esse quotidiano linear só foi interrompido pelo Masterchef. O concurso operou uma pequena revolução na sua vida. A culpa foi de Muhammad, o filho de 8 anos, que viu o anúncio e incitou-a a inscrever-se. Sahima confessa que era então muito insegura, nada do que parece hoje. “Quando lá entrei não tinha confiança em mim. Pensava que não ia aguentar mais do que uma semana”, atesta. “A ideia era aprender um pouco e voltar para casa”.

As gravações duraram três meses, período durante o qual se manteve fora de casa, só visitando a família aos fins-de-semana. Sahima diz que se deu muito bem com o grupo, inclusive com o concorrente Alexandre Botelho, visto como um líder belicoso, mas alguém que desde cedo esteve ao seu lado. 

A única coisa que parecia transtorná-la eram as sobremesas e as provas de grupo. “Todos tinham medo de mim, porque achavam que eu ia estragar tudo com o tempero. Não me deixavam fazer nada”, lamenta, acrescentando: “A única pessoa que confiava em mim era o Alexandre. Confiava de olhos fechados.”

Quem também acreditava nos seus temperos eram os jurados, que foram sempre dando-lhe a vitória, enchendo-a de louvores e de confiança, extasiados com a sua cozinha exótica, bonita e equilibrada. 

Foi isso também que me chamou à atenção. Sem provar nada, assistindo apenas aos programas, percebi nela uma delicadeza rara. Havia ali algo novo, uma cozinha indiana fina, elegante. Sahima arriscava sem renegar à sua herança, à sua cultura, num exercício de fine dining sem rede, sem escola, sem experiência de restaurantes. 

Por causa do regime halal na alimentação, definido na lei islâmica, Sahima sempre foi pouco a restaurantes. De acordo com essas regras, o abate dos animais, por exemplo, obedece a regras específicas e há alimentos proibidos, como a carne de porco e derivados. “Mesmo os restaurantes que se dizem halal nem sempre o são”, justifica, deixando claro que a sua vivência muçulmana não tem concessões. “Por isso, quando saímos para comer fora, optamos mais por marisqueiras, pizzas, frango de churrasco”. A evolução aconteceu à custa da voragem por absorver tudo o que lia e via, a toda a hora. 

As formações feitas no âmbito do Masterchef, no Centro Formação Profissional para o Sector Alimentar, na Pontinha, eram dos seus momentos favoritos — e Sahima só lamenta terem durado pouco tempo.  

O futuro é incerto, mas o sonho não

Depois da vitória, a vida familiar regressou à normalidade, mas a cabeça continua a pensar em cozinha. 

Para já, Sahima vai tendo convites para eventos esporádicos, como o Festival do Chocolate, em Óbidos, procurando furar sozinha num mundo com os seus códigos e os seus padrinhos. Sem aconselhamento profissional, alguns já tentaram aproveitar-se do seu sucesso e do seu talento, com convites sem cachet e promessas vãs, mas faltam convites sérios para projectos de futuro, como a publicação de um livro (que ela já tem na cabeça) e a produção de um programa de televisão (com que ela sonha). 

Entre as suas poucas conselheiras, no meio, está Noélia Jerónimo, a chef algarvia e jurada do Masterchef, com quem Sahima sente um dever de gratidão — e a quem vê uma luta “pelo papel das mulheres na cozinha”. 

Em todo o caso, tem consciência que terá de contar consigo e com a sua família. É também por isso que nada a ocupa tanto como a abertura do seu restaurante. Os passos estão bem programados. Sahima reconhece as suas fragilidades, o que tem de melhorar, o que não sabe. É que uma coisa é cozinhar bem para três jurados. E outra, bem diferente, é gerir um restaurante seu, conhecer da logística e das finanças, da conservação dos alimentos e da segurança alimentar, da gestão de recursos e dos equipamentos. 

Sahima tem consciência disso. Por isso, dentro em breve, irá trabalhar uns dias no Belcanto, restaurante com duas estrelas Michelin, em Lisboa, a convite de José Avillez, chef que conheceu enquanto convidado especial num dos programas do Masterchef. O mesmo deverá acontecer no The Yeatman, de Ricardo Costa, com duas estrelas Michelin, no Porto. E irá ainda frequentar as aulas no Basque Culinary Center, em San Sebastian, Espanha, durante um mês, prémio pela vitória no concurso da RTP.  

O butter chicken e o grande final

Chega então a pièce de résistance, o prato de butter chicken ou murgh makhani, um dos mais populares da cozinha indiana moderna. A versão de Sahima leva cebola nova, gengibre, cominhos, iogurte e natas — como um molho korma. Tudo começa num refogado, onde também entra uma malagueta, mas Sahima frita-a só ligeiramente e depois tira-a, antes de triturar tudo na misturadora. “Volto a colocá-la só no fim. Se não tirar a malagueta, o molho fica mais amargo”. Eis mais uma prova da sua atenção aos detalhes, da elegância da sua cozinha. “Foi este molho que fiz com o carabineiro, na prova da final do Masterchef”, diz.

Está tudo óptimo. E é tanto mais louvável quanto Sahima só prova depois do final do jejum, quando está tudo pronto. A dada altura, levantou-se e foi orar, mas logo a seguir vejo-a a passar para a cozinha. “Temos de provar antes de o marido chegar à mesa. É quase só rectificar o sal e o picante”. 

Ismail está contente com o butter chicken e com tudo. O iftar é para ele uma refeição reconfortante, abençoada. “É a sensação de dever cumprido”, explica, enquanto vai espalhando o arroz pelo molho, com os dedos — que na casa come-se como na Índia, à mão.

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Sahima mal se senta. De repente, está novamente ao fogão, agora a fazer as parathas. A paratha é um dos pães indianos mais gulosos. Basicamente é um chapati, uma espécie de pão pita, embebido em manteiga ghee, mas usa uma técnica mais complexa, em que a massa, feita de raiz, é enrolada, formando um cone, e depois novamente aplanada, antes de ir para a frigideira.  

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Segue-se o pão roti, este com a massa simples, sem ovos, mistura de farinhas branca e integral. Está absolutamente perfeito, inflando-se pouco depois de assentar na frigideira. O meu estômago dificilmente consegue ingerir mais comida, mas Sahima considera-se uma especialista — e quer dar-me a provar. Apesar de simples, o pão indiano fica perfeito, confirmando que Sahima quer a excelência, em tudo o que se mete. 

Feita a digestão, já quando estava a escrever este texto, tentei perspectivar o perfil do seu restaurante. Será que Sahima iria confinar-se ao receituário indiano? Ou, por outro lado, será que o menu — e tudo — seria uma misturada, porventura perdendo-se a alma e o norte? 

Fui então espreitar a sua página do Instagram. Estava lá tudo. Na sua bio, lia-se: “Roti master. Comida com sabor. Fusão. Proud Muslim”.

Que Sahima nos dê de comer. Em nome de Alá. Em nome da sua felicidade. Em nosso nome. Bismillah.


Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista

 

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