O jornalista e crítico gastronómico Ricardo Dias Felner estreou-se no supermercado de que se fala e diz-lhe do que gostou mais e menos.
Logo no estacionamento senti uma tensão. Sobravam poucos lugares e dois automobilistas discutiam pela vaga perto das escadas rolantes de acesso à loja, instalada no primeiro andar. Lá dentro, a mesma urgência. Não havia magotes a empurrar-se, mas havia famílias inteiras nervosas a discutir sobre que pizza levar — “eu prefiro a de carbonara” — e havia uma sensação de corrida mais louca do mundo, uma sensação de “despacha-te, que o amaciador Talco ainda acaba”, “rápido, que ainda esgota o torrão de kinder bueno”.
Tentei alhear-me deste frenesim, mantendo o espírito zen — ir às compras costuma ser um prazer. Mas quando dei por mim estava igualmente perturbado. “Desculpe, dá-me licença para tirar os canelones?”. “Vai levar os chocolates todos?” “Esse carrinho de compras é meu”. “A minha senha é que é a 10”. Quando dei por mim tinha sido apanhado pela mercadonite.
O fenómeno começou em 2019, data do primeiro supermercado a abrir no país, espalhando-se depois de Norte para Sul, qual invasão espanhola, mas agora das boas, como se de repente fôssemos todos integracionistas, todos a gritar vivas ao Iberismo, Aljubarrota que se dane, não há padeira que vença umas croquetas de frango, não há um Nuno Álvares Pereira que possa contra as “Patatinas extra-crunch”, não há um D. João IV que trave o avanço das barritas de cacahuetes e do húmus de azeitonas Kalamata e dos temakis (com a alga nori habilidosamente separada do arroz, para se manter fresca, clap, clap,clap).
A mercadonite impôs-se, inclusive, entre os meus amigos de Lisboa, gente capaz de viajar até Ayamonte para matar o bicho. Os mais pobretanas vinham de lá doidos com os detergentes e com os doces, fossem os mochis da marca branca, fosse o gelado de caramelo salgado — essoutra infecciosa das sociedades modernas. Os mais fidalgos, por sua vez, puxavam pelo presunto ibérico, “cortado ao momento, atenção”, e pelas conservas, como o salmão marinado ou as anchovas e os boquerones. Um deles descreveu a Mercadona como “um supermercado algures entre um Continente e um El Corte Inglés”.
Uns e outros fizeram-me sentir excluído. Para quem vive em Lisboa, os últimos quatro anos têm sido de isolamento comercial, como se estivéssemos numa ostra rodeada de paraíso, um paraíso intangível. A grande maioria das 39 lojas da Mercadona que abriram no país, até agora, ficam todas no Norte e Centro do país, excluindo a capital. De acordo com as últimas notícias, a estreia do primeiro supermercado em Lisboa deverá acontecer só lá para 2024, provavelmente na Quinta do Lambert, entre Alvalade e o Lumiar.
Demasiado tempo.
Dale a tu cuerpo alegría, Barcarena
Há dias, decidi pôr fim à ostracização. Se a Mercadona não vinha até mim, ía eu até à Mercadona. Assim aconteceu. A primeira incursão foi à loja de Caldas da Rainha. Sem sucesso: era tanto o afã dos locais que o trânsito estava parado ainda antes de chegar ao estacionamento. Dei meia volta e decidi esperar por outra oportunidade.
Voltei à carga na quinta-feira passada. Pelas 15.30, pus-me a caminho de Barcarena, a 25 minutos do centro de Lisboa.
À entrada, uma nota de desilusão. De fora, nada de espectacular, o edifício monótono como um armazém de zona industrial, sem outro design que não o logotipo. Lá dentro, continuava a ser um supermercado e não uma nave espacial, a única inovação aparente numa máquina de café self service. De resto, nem decoração high tech, nem ambiente eco, os mesmos plásticos e alumínios por todo o lado, os meus cromados fake no mobiliário.
A Mercadona era, afinal, deste planeta e como qualquer loja de comeres deste planeta tinha comida pré-feita. Foi por aí que começou o périplo.
Eis logo a abrir os preparados pronto-a-comer. À esquerda frangos assados, paellas e prateleira de sushi (no campeonato do peixe cru, várias possibilidades, a começar num poke bowl bem completo, com manga e salmão — e, claro, uns “E”, entre eles um corante amarelo desnecessário, suponho que para intensificar a manga). À direita, uma secção inteiramente dedicada a pizzas frescas para terminar no forno; e outra onde sobressaíam uma lasanha e uns canelones com picado de boletus e azeite de trufa.
A lasanha é todo um campeonato à parte, entre os preparados dos supermercados. É mítica, por exemplo, a do Lidl, mas esta superou tudo o que conheço da concorrência. Também acima da média os canelones: aquecidos durante quatro minutos no micro-ondas, completaram um jantar de família onde também se experimentou uma salada russa batatosa, sem grande frescura, e o tal húmus batido com uma pasta de azeitonas gregas, as Kalamata, que melhorou com um fio de azeite e umas amêndoas torradas.
Avancei e dei de caras com peixaria, outro dos departamentos elogiados nos fóruns da Internet e no aconselhamento pessoal. Por boas razões. No dia em que lá fui, a oferta era difícil de bater no campeonato dos super, somando qualidade, preço, diversidade e informação ao consumidor. Saltaram logo à vista as sardinhas, prematuras mas tesas como grampos, as primeiras do ano em que pus os olhos — e, não, não eram congeladas (3,95€/kg).
Perguntei a origem e a peixeira, em vez de se desmarcar com um “acho que” ou um “deve ser” foi ao papelinho junto à caixa onde estavam expostas confirmar a ficha técnica. Era dessas fichas técnicas raras, porque outra coisa boa dos Mercadona é serem transparentes: dizia o nome do barco, o nome do porto, da empresa pesqueira e do sítio onde tinham nadado pela última vez, no caso o Golfo da Biscaia.
Do Golfo da Biscaia vinham também as sardas, gordíssimas, que ali são logo bem lavadas e evisceradas. Curiosamente, uma cliente perguntou se podia levar o peixe sem ser limpo e a peixeira, avisada do que sucede às vísceras de um peixe azul perante o estio primaveril, recusou e bem, afirmando que se trata de um procedimento mandatório.
Mais impressionante ainda a lula exposta, com a pele intacta, parecendo ser de pesca de anzol, de águas portuguesas do Atlântico Nordeste, desembarcada em Aveiro. Não era barata (23,95€/kg), mas era superior a 90 por cento das lulas que encontramos nos mercados de peixe. Potas igualmente frescas e inteiras, das pequenas, mais manobráveis (7,95€).
No capítulo do bacalhau, a oferta parece dominada pelo produtor Rui Costa, da Gafanha da Nazaré, um histórico do sector, que tem a vantagem de controlar a cadeia de produção na origem, inclusive logo na salga em verde, ainda na Noruega. Resta saber que bichos vêm para aqui, se os de gama média e alta, se os congelados antes da cura, como é hábito as marcas fazerem nos segmentos mais baixos que seguem para a grande distribuição. Também não vi informação sobre o tempo de cura, falha crónica no que ao bacalhau diz respeito, transversal a todo o comércio.
Nenhuma nota a assinalar nos frescos, sem grande variedade e sem apostar noutras formas de produção sem ser a convencional (onde está o biológico?). Nas verduras como nas frutas, tudo brilhante e redondinho e homogeneizado, sem atenção à sazonalidade. De notar, o esforço por ter Made in Portugal, subsistindo todavia importações bizarras, como a de uns coentros “frescos” que viajaram de Espanha até Barcarena.
Mais interessantes as leguminosas, onde Espanha é um dos pontas de lança mundiais. Em toda a minha vida, o melhor prato de grão que comi aconteceu em Leon, justamente, e são de Leon os frascos de grão aqui expostos, de bom calibre.
Nas carnes, a Mercadona faz jus à tradição do porco ibérico e aos cortes espanhóis. Destaque para a presa, uns lombinhos marmoreados cujo o único senão é o preço, 23,98€/kg, mais 19€/kg do que o valor pedido pelo cachaço de porco branco, logo ali ao lado.
Detenhamos-nos agora nos doces, departamento onde a excitação atinge níveis de furor excessivos. Vi listas intermináveis de recomendações com elogios às oito variedades de torrões, aos petit gateaux, aos mochi (bolinhas de massa de arroz recheadas) e a basicamente tudo o que tinha demasiado açúcar. Pessoalmente, testei e aprovei as barritas geladas de amendoim e as tortas geladas de nata e chocolate, uma imitação particularmente boa da Vianetta, clássico dos produtos brancos de supermercados.
Nas coisas difíceis de encontrar, assinalar as amêndoas secas e salgadas e viciantes da Hacendado (a marca branca da Mercadona, que todavia indica sempre o produtor); o ponto de maturação perfeito dos abacates; a venda de açafrão verdadeiro a um preço civilizado (1,80€ por um pacotinho com 0,37 gramas); de massa de pimentão, a 1€/200gr ; e de pimentão de La Vera, da Extremadura — que, todavia, para mim, tem o defeito de saber demasiado a fumo (1,55€/75gr).
Na padaria, por sua vez, viam-se os habituais cacetes de massa pré-congelada e os Mafra e todos os formatos que há nos outros supermercados.
E nas prateleiras de vinho, menos oferta do que toda a concorrência — e é uma pena, que nuestros hermanos têm muitas e boas pingas.
No final, foi muito reconfortante perceber que as 17 caixas estavam abertas e a funcionar a bom ritmo, sem que estivéssemos sempre a ouvir uma speaker a indicar o número da caixa que “vai abrir” e sem os motins costumeiros. A turba, já com os carrinhos cheios, parecia finalmente em paz e em paz foi atendida.
Tudo dado e baralhado, concluiu-se o seguinte. A Mercadona é bem-vinda, sobretudo pelo que traz de bom de Espanha — e há tantas coisas boas em Espanha. Mas não me parece que, do ponto de vista gastronómico, se destaque da concorrência, seja ela os supermercados que vieram do Norte, como o Lidl e o Aldi, seja os porta-aviões tugas, como o Continente e o Pingo Doce, ou mesmo os francófonos, como Intermarché e o E. Leclerc. Cada um deles tem os seus trunfos e quantos mais houver, melhor.
A Mercadona faz sentido, a mercadonite nem tanto.
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
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