Foi o primeiro e mais ambicioso projecto de ervas aromáticas biológicas do país. Mas tem os dias contados.
O mais emblemático campo de ervas aromáticas do país, o Cantinho das Aromáticas, instalado na Quinta do Paço, em Canidelo, Gaia, vai ser urbanizado a partir de 2024 — segundo disse ao EGGAS o arrendatário, Luís Alves.
O proprietário dos terrenos terá beneficiado de uma alteração ao Plano Director Municipal, em 2014, tendo acordado com o arrendatário, dono do Cantinho das Aromáticas, a sua saída do terreno em 2024.
A área de dez hectares — que correspondente a dez campos de futebol, três dos quais de cultivo de plantas em modo biológico —, é um parque aberto ao público desde há 21 anos e alberga um acervo notável de plantas aromáticas de vocação gastronómica e medicinal, dentro do município de Vila Nova de Gaia.
A quinta tem ainda uma dimensão histórica importante. Segundo Joel Cleto, historiador do Porto, Pedro e Inês de Castro terão aqui vivido entre 1352 e 1353.
De acordo com Luís Alves, os antigos terrenos agrícolas “vão ser ocupados por casas”. O homem por trás do Cantinho das Aromáticas mostrou-se, contudo, resignado com a sua saída, avançando que está na altura de mudar de vida e de região.
A comunicação do despejo aconteceu em 2018, na altura da renovação do contrato de arrendamento, altura em que terá começado a planear a sua nova vida.
Ainda assim, Luís Alves lamentou o fim da utilização do espaço enquanto equipamento público verde e pedagógico. “Queria sair, mas gostava que se prolongasse o conceito. Devíamos manter quintas como esta. Isto é um negócio, mas as entradas são livres, como vê”, diz, apontando para um casal que passeia por ali. “Fazemos cultura e educação”.
A notícia apanhou-me de surpresa, a meio de uma reportagem onde se pretendia dar a conhecer, precisamente, o valor do espólio do Cantinho das Aromáticas. Apesar das expectativas serem altas, a dimensão (não, não é um Cantinho) e alcance do projecto, in loco, deixou-me ainda mais entusiasmado.
Luís Alves, o ervanário extravagante
À chegada, vemos uma estufa do lado direito, onde são criadas plantas em viveiro, mas o terreno espraia-se depois por um lago com patos e cavalos garranos e plantas silvestres, zonas de arvoredo e arbustos alternando com fileiras de plantas de cultivo.
A cara e o coração do projecto é um homem carismático. Luís Alves, 50 anos, formou-se em Agronomia pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e começou por notabilizar-se por ter plantado uma faixa com mais de 400 espécies de aromáticas nos jardins de Serralves, em 1997. Mas só em 2002 se dedicou ao projecto da sua vida, arrendando a Quinta do Paço, em Gaia, e fundando o Cantinho das Aromáticas.
A partir daí, tratou do acervo de ervas do Canidelo, trocando sementes como quem troca cromos, fosse com viajantes, ordens religiosas, imigrantes ou colegas de ofício — uma comunidade de fervorosos amigos e estudiosos, sem fronteiras. “Ainda na semana passada recebi jambu, vindo do Brasil”. [O jambu dá uma picância muito própria, deixando os lábios dormentes].
Através do Cantinho das Aromáticas, Luís tem procurado educar para as ervas. Uma das suas batalhas mais insistentes é ensinar os portugueses que um chá não é uma infusão, e que uma infusão não é uma tisana.
Nos últimos tempos, as redes sociais são o palco para esta luta. Há umas semanas, publicou um post no Instagram onde usava o jornalista e apresentador britânico Piers Morgan — que fez a célebre entrevista a Ronaldo, antes do Mundial de futebol —, para vender as suas ideias e as suas ervas.
Com o título “Piers Morgan confirmou que não é ele a senhora dos pombos do filme Sozinho em Casa 2”, Luís Alves agarrava o leitor, para depois passar a mensagem e fazer marketing: “[Piers Morgan] Aproveitou também para confirmar que sabe a diferença entre chá, infusão e tisana. E que sempre que vem a Portugal, para estar com o seu 7 favorito, não dispensa a tisana Conspiração D’ouro BIO, do Cantinho das Aromáticas.
Noutro post anterior, fez-se acompanhar da mulher emergindo de uma chávena de chá — perdão, de infusão.
Mas Luís Alves é mais do que um comunicador talentoso, capaz de usar os seus conhecimentos e relações (faz-se fotografar com Manuel Goucha Soares e outras figuras públicas, que o visitam) para promover a sua causa.
Na verdade, abriu um caminho de valorização das ervas aromáticas, muito maltratadas em Portugal. Hoje em dia, um pouco por todo o país, encontramos projectos parecidos, cada um com as suas especificidades — mas ele foi precursor.
“Damo-nos todos bem”, garante Luís, parando junto a uma planta de feno-de-cheiro (Anthoxanthum odoratum), que ofereceu, há muitos anos, à fundadora do projecto Ervas Finas, Graça Saraiva, estabelecida na aldeia de Fonteita, perto de Vila Real. “Há pouco tempo, estivemos num almoço de fogo no chão para o qual ela nos convidou e serviu-nos um arroz de forno, feito numa infusão de feno-de-cheiro, que nos levou para um lugar bonito e seguro, algures na infância”.
Juntar mais de duas ervas é bruxaria
De resto, a cozinha popular e regional portuguesa sempre fez uso de ervas aromáticas, mas não como cultura de cultivo. Com o crescente distanciamento entre quem vive do campo e quem cozinha, algumas foram desaparecendo de tachos e saladas e acabou-se por reduzir praticamente tudo a salsa e coentros.
Luís Alves dá uma imagem poderosa desta desconsideração, lembrando que as pessoas se habituaram a ver nas ervas aromáticas o parente pobre dos ingredientes. “As ervas aromáticas, como salsa e coentros, são uma coisa que se oferece nos mercados”, sublinha, enquanto passamos pelas suas estufas inteligentes, onde estão os viveiros de plantas que, hoje em dia, o Cantinho distribui por uma rede de agricultores que trabalham consigo.
Para além do mais, a nossa culinária nunca foi grande utilizadora de bouquets. Há os típicos ramos de cheiros — também em desuso, diga-se —, mas limitam-se a duas ou três ervas, quase sempre frescas.
As misturas fazem confusão aos portugueses, mas não é necessariamente assim, quando pegamos no receituário estrangeiro. ““A maioria das pessoas não utiliza mais do que uma ou duas ervas por prato. Mais do que isso acham que é bruxaria. Mas não vêem problema em misturar várias especiarias, veja-se o caril”, atira, concluindo. “Estamos muito longe dos ramos de cheiro em França, com sete ervas. Mesmo os cozinheiros mais conceituados não os usam, infelizmente”.
Quais são as ervas tradicionais portuguesas?
Ainda que sem bouquets sofisticados, há ervas endémicas portuguesas que definem a nossa gastronomia tradicional, algumas na iminência de desaparecer. É o caso da hortelã da ribeira, que Luís Alves colhe agora. “Na Foz do Sabor, comi uns peixinhos da horta maravilhosos, com isto”.
Semanas antes, por email, tinha desafiado Luís a definir aquele que seria, para si, um bouquet tradicional de ervas aromáticas portuguesas. Dentro desse mesmo grupo, ele começou por distinguir duas espécies que são endémicas da Península Ibérica, só existem neste território: o tomilho bela-luz ou sal-purinho (Thymus mastichina), cuja denominação decorre de ser um intensificador de sabor, usado em substituição do sal; e, precisamente, a hortelã-da-ribeira ou erva-peixeira (Mentha cervina).
Fora estas “duas gigantes esquecidas”, Luís enunciou outras em vias de esquecimento, igualmente importantes, nas diversas cozinhas regionais:
— a nêveda ou erva-das-azeitonas (Calamintha baetica) – “Ainda recordo quando no Bolhão havia azeitona curtida com esta erva; Nos Açores é fundamental nos licores, sobretudo no Pico”.
— a pimenta-de-água (Polygonum hydropiper) – “Antes de trazermos pimenta nos Descobrimentos já cá havia algo do género! Não conheço um único chef que utilize esta erva”.
— o funcho ou fiolho (Foeniculum vulgare) – “Por cá, todos querem endro na cozinha, mesmo quando não há, e no jardim o funcho abunda”.
— o rosmaninho (Lavândula sp.) – “Estão totalmente esquecidos os pratos de forno com esta maravilhosa erva”.
— a carqueja (Genista tridentata) – “Não conheço um único restaurante a servir pratos com esta maravilhosa erva”.
Mas se quisermos elencar todas as ervas que fazem a cozinha tradicional portuguesa, ainda temos de juntar-lhe algumas espécies espontâneas ancestrais. A selecção de Luís Alves inclui loureiro (Laurus nobilis), salsa (Petroselinum crispum), coentros (Coriander sativum), orégãos (Origanum sp.), alecrim (Rosmarinus officinalis, “recuso-me a assumir a nova nomenclatura, Salvia rosmarinus”), hortelã (Mentha spicata), poêjo (Mentha pulegium), erva-peixeira ou hortelã-da-ribeira (Mentha cervina) e tomilho bela-luz (Thymus mastichina).
Chá e outros exotismos
Encontramos todas estas ervas no Cantinho das Aromáticas — mas há muito mais. A dada altura, chegamos a uma linha de plantas arbustivas. “Esta é a maior produção de lima Kaffir da Europa. É da família dos citrinos e, como qualquer citrino, dá-se bem na zona do Porto”. Mais à frente, outra raridade internacional, relativamente à qual Luís Alves vê grande futuro: absinto. “Está a ser utilizado em casas do Alentejo e Douro, para fazer vermute”.
Na zona das asiáticas, no extremo do terreno, temos por fim uma barreira de grandes magnólias e, ao lado, uma prima. De seu nome Camellia sinensis, é mundialmente reconhecida como chá.
A planta do chá é praticamente inexistente na Europa. Entre as poucas áreas de cultivo para comércio estão a Ilha de São Miguel, com os chás da Gorreana, e a propriedade de Dirk Niepoort e Nina Gruntkowski, em Fornelo, perto de Vila do Conde, o projecto do Chá Camélia.
Luís não a comercializa. Ainda que a sua qualidade seja “brutal”, ela está ali por razões didácticas.
A nossa deambulação pelos “jardins produtivos” do Cantinho — como Luís gosta de lhes chamar — foca-se, entretanto, numa planta sem valor gastronómico. Também as há ali — e muitas. Luís Alves trava junto a uma árvore despida, só os troncos secos. “É a árvore da castidade” (Vetex Agnus Castus), muito procurada por profissionais do oculto e por senhoras que querem fazer com que os seus parceiros deixem de ‘mijar fora do penico’” (Eu diria, apenas: que deixem de mijar). “É um anafrodisíaco, causa uma impotência temporária nos homens”.
A parte medicinal tem ocupado muito do estudo promovido pelo Cantinho das Aromáticas. Luís é um conhecedor e luta contra a associação do seu uso a práticas esotéricas. “As ervas estão nas farmácias todas. Só que em comprimidos. Na Alemanha, aliás, as farmácias englobam também a dimensão de ervanária”.
Luís Alves dá o exemplo da equinácea, uma planta usada para reforçar a imunidade a vírus. “Lá em casa consumimos muito, sobretudo no Outuno”, atira, lembrando que ela está à venda, em ampolas, nas farmácias. Da mesma forma, lembra que está comprovado o efeito relaxante da cidreira. Ou que a salva, mesmo ali à nossa frente, é um depurador natural do sangue — e um pitéu, sobretudo se for panada.
Os clientes do Cantinho são das mais diversas proveniências e profissões, mas há certas ervas que interessam a grupos de pessoas particulares. É o caso da perpétua roxa, boa para a saúde das cordas vocais. Entre os seus utilizadores, estão profissionais da voz, como Rui Reininho ou a cantora Ana Matos Fernandes, conhecida como Capicua.
As dúvidas no uso de ervas para fins medicinais, muitas vezes, resultam da dosagem. Para uma bebida ser agradável de beber, o normal seria juntar-se 3-5 gramas por litro da erva, explica Luís Alves. Mas para se conseguir os efeitos, na maioria das ervas aromáticas esse valor teria de subir para 20-30 gramas por litro.
A visita termina na loja, onde há infusões para diversos efeitos, incluindo uma lúcia lima topo de gama, seca no ponto perfeito, as folhas com a forma intacta.
Quando me despeço, já não cheira a ervas aromáticas, mas a fim de festa. O Cantinho tem os dias contados e Luís Alves assume a despedida. Dentro de pouco tempo, aqueles canteiros e recantos serão arrancados. A Quinta do Paço, de Pedro e Inês de Castro, de Luís Alves e dos moradores de Gaia, dará lugar a betão privado.
Até lá, é aproveitar. A loja e a quinta estão abertas ao público de segunda a sexta, das 09:00 às 18:00 horas. E ao sábado e domingo, das 09:30 às 18:00 horas.
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
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