Crítica de Restaurantes
Casa Arménio (Tentúgal)
Existe há mais de 50 anos e preserva um dos pratos — e um dos patos! — mais extraordinários da cozinha portuguesa.
Uma casa antiga com tecto em madeira, quadros de caça na parede, uma Dona Luísa na cozinha, sopa de nabos, um pratinho de pastéis de massa tenra, depois uma cabidela e um assado em forno a lenha e, para terminar, dessas queijadas com as pontas escuras. Parece de filme, mas existe.
A Casa Arménio fica em Tentúgal, vila histórica para além dos pastéis, não é tão fora do radar assim. Pela A1, sai-se em Coimbra, e são 20 minutos de automóvel por entre as várzeas do Mondego.
Agora, é preciso escolher o dia. A sala principal alberga 30 pessoas, mas 30 pessoas serão muitas pessoas para esta cozinha. É quase tudo feito ao momento e sem pressas e sem brigadas.
Portanto, é ir descontraído, de preferência ao almoço e contornando os fins-de-semana, num desses dias folgados da vida, como foi a terça-feira que me saiu em sorte.
Sobre a história. Tudo começou em 1966, com a mercearia e taberna do senhor Arménio e sua mulher, maga dos tachos. Até que um dia, José Craveiro, filho do fundador, desafiou a mãe a cozinhar uma ceia completa para um grupo de amigos, doutores de Coimbra.
Terá corrido bem a experiência e também a aprendizagem da mulher de Craveiro, Maria Luísa Correia, que foi aluna atenta de sua sogra e lhe herdou a ementa e o estabelecimento.
A taberna evoluiu para casa de comeres com ares de pensão bem posta, cortinas e portadas de madeira, toalha de pano, talvez só um ladrilho moderno a mais (ah, se fosse antes taco de madeira…).
No centro do cardápio está o pato, sendo que também já esteve no centro do edifício, de arquitectura conventual. Uma cliente antiga contou-me que, há pouco mais de duas décadas, quando as pessoas iam à casa de banho “podiam apreciar a matéria-prima ao vivo, no pátio das traseiras”.
Os patos andavam por ali a grasnar e deles se recolhiam os sucos e a carne a fumegar nos tachinhos sobre as mesas, paredes meias.
Questionado sobre o assunto, o empregado foi misterioso sobre a proveniência das aves, nos dias que correm. “Posso dizer que são de qualidade”, atirou, sempre lacónico, mais timidez que antipatia.
Nestes tempos vegetarianos e hipócritas, seria complicado justificar a presença doméstica dos animais, ainda que o pátio me pareça mais agradável do que aviários higienizados a antibiótico, onde bichos com penas crescem sem ver o sol.
Uma coisa é certa, a cabidela de miúdos de pato continua maravilhosa, o sangue abundante e fresco. Opaca e fresca, acidulada sem morder, elegante sem ser sonsa, um manto sobre o arroz, bagos perfeitos de carolino do Baixo Mondego afundados e inteiros.
É uma cabidela que não quer ser risoto, como hoje está de moda, mas também não é aguadilha de vinho tinto. É uma cabidela sem toques de não-sei-o-quê e sem caldos ultra-concentrados. É uma cabidela de sangue limpo e de um equilíbrio notável. Uma cabidela portuguesa, porventura a melhor de todas as cabidelas.
À cabidela de miúdos de pato acresce outra de galinha e um arroz de galinha com ervas aromáticas, bem como um pato assado no forno a lenha e vitela estufada.
O menu do dia, compacto, fica completo com broa de milho e de frutos secos de entrada, azeitonas e pastel de massa tenra acabado de fritar. Aos domingos e feriados há canja de galinha. É altamente recomendado o arroz de pato seco e o coelho à caçador, ambos por encomenda (“bastam 24 horas de antecedência”).
Nos doces, nunca falhar a queijada de Tentúgal, magistralmente queimada, e um leite creme que é um creme de leite, de preferência sem ser queimado (digo eu, que prefiro menos doce), talvez só com um pozinho de canela. Ficou por provar o pudim conventual, também ele célebre.
Sobre os vinhos, a carta tem boas surpresas, com alguns vinhos da Bairrada belíssimos e a bom preço, como foi o Kompassus Reserva Vinhas Velhas, monovarietal de Baga (2019), ainda com anos de vida.
Uma nota final. A Casa Arménio contém segredos antigos. Saí sem a certeza de que esse conhecimento seja passado, ou para a descendência ou para a posteridade culinária, num livro ou documento que dignifique a sua história e a sua cozinha. Seria uma pena se o país perdesse a herança de José Craveiro, homem que tem defendido o folclore e a etnografia de Tentúgal como poucos.
É um pouco de Tentúgal e da cozinha portuguesa que está na Casa Arménio. E é tudo muito delicioso.
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
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