Ter uma faca de qualidade é o começo de uma relação maravilhosa e patológica com um universo complexo e fascinante. Eis tudo o que precisa de saber para cortar comida como ninguém.
Há três anos, encomendei um cutelo do Japão, a lâmina grande como uma pá. Chegou dentro de uma caixa, a brilhar, o cabo em madeira de mogno, o aço feito de carbono japonês. Usei-o para cortar os legumes da sopa desse dia e logo aprendi que aquela teoria das facas rombas serem mais perigosas do que as afiadas é uma treta.
À primeira cebola picada, dois minutos de jogo, a Suien de 22 cm levou-me a unha e um pedaço do polegar.
Aplaquei o sangue com água fria e três pensos e prossegui, de tão excitado estava com o brinquedo. Sentia um misto de dor e orgulho. Corta mesmo! Acto contínuo, siga para o erro número 2 do tóino das facas, porventura o mais comum. Como é que o tóino faz quando o picado de alho fica agarrado à lâmina? Com o dedo indicador esticado, desliza-o sobre a lâmina empurrando o alho colado, de cima para baixo.
Costuma ser seguro, se feito com delicadeza. Mas, não, quando se tem uma faca afiada por um japonês de Echizen. Novo lenho. Este precisou de ligadura.
Tudo cortado e baralhado, em três minutos, fiz dois cortes, enchi a bancada de sangue e pus a família em sobressalto. A faca nova era uma “arma”, que devia estar arrumada na gaveta do veneno para ratos.
Percebi, então, que nunca na vida tinha usado uma faca a sério. Que tinha ali outra coisa.
As duas facas que mandam no mundo
De então para cá, fui aprender. Descobri algumas coisas, mas não foi fácil. Faltam tutoriais, faltam livros, faltam cursos. E é grave. Devíamos treinarmo-nos no uso de facas de cozinha desde pequeninos.
A faca é o primeiro passo para se começar a cozinhar. Sem saberem usar a faca, os adolescentes não cozinham. E se os adolescentes não cozinham, vão alimentar-se de bostas processadas.
Se tivemos metalomecânica no Secundário, onde usávamos tornos e guilhotinas, porque não uma disciplina de “Manuseio de Facas de Cozinha”?
É preciso compreendermos que depois da roda e da escova de dentes, a invenção mais importante para a Humanidade foi a faca. A faca apareceu antes de dominarmos o fogo, há cerca de um ou dois milhões de anos, inventaram-se instrumentos cortantes desde a Idade da Pedra.
Desde então, é difícil imaginarmos a vida sem uma faca. Quantos dias da nossa vida adulta passámos sem pegar numa faca? Haverá outro objecto que tenhamos manipulado, de forma tão regular — na juventude como na velhice —, como a faca (à excepção do telemóvel, vá)?
E, no entanto, ninguém lhes liga. A faca é o parente pobre da cozinha doméstica. Por esses lares fora, tenho visto baixelas de prata, armários cheios de Le Creuset, louça Vista Alegre, copos Riedel. Mas quando chegamos às facas, encontramos uns alumínios foleiros com cabos de plástico.
As duas facas que mandam no mundo
À falta de cultura e ensino curricular, infiltrei-me em fóruns do Reddit; vi vídeos do YouTube; comprei livros técnicos (Complete Book of Knife Skills é um bom começo); passei a acompanhar blogs e vlogs de alguns dos grandes divulgadores japoneses de cutelaria artesanal. Visitei oficinas. Passei a estar atento às opções dos chefs.
Uma das coisas que descobri, ao visitar cozinhas profissionais, foi que boa parte dos cozinheiros tem uma relação descuidada com as suas facas. Muitos — diria, os melhores — têm o seu próprio estojo de facas, que anda consigo. Mas grande parte usa o que tem mais à mão, sendo que frequentemente as facas mais à mão numa cozinha de restaurante estão por afiar há meses.
Quando falamos de sushimen, todavia, a conversa é outra. Os chefs de restaurantes japoneses percebem do assunto, amam as suas facas. Quando fiz parte de um concurso de sushi, como júri, estava tão interessado no corte do sashimi dos concorrentes como nas facas sobre a bancada, quase todas yanagiba longas como sabres.
Foi lá que vi, pela primeira vez ao vivo, uma Masamoto, no caso, nas mãos do chef Aron Vargas, dos restaurantes japoneses Aron, que aliás viria a vencer o evento. A Masamoto é das marcas mais consideradas do mundo. Uma yanagiba com cerca de 27 cm de lâmina pode custar bem mais de 1000 euros.
Mas até chegar às yanagiba, há um longo caminho. A primeira coisa a saber é que existem duas grandes facas no mundo. Uma é mais usada no Oriente, sobretudo na China, e chama-se cutelo; outra é mais usada no Ocidente, sobretudo na Europa e nos E.U.A. e chama-se faca de chef.
Com cada uma delas, pode-se fazer de tudo, desde abrir cachaços de boi a picar salsa.
Em Portugal, o cutelo é usado praticamente só em talhos e peixarias. Mas na China é a ferramenta nacional. Está presente em todas as cozinhas, amadoras ou profissionais, e é capaz das tarefas mais delicadas às mais agressivas. Há cutelos de vegetais e há cutelos de carne, raramente um serve para ambas as tarefas: sendo iguais na aparência, são formados por ligas metálicas distintas e isso faz uma diferença dramática (vide mais à frente).
Mas cortar vegetais com um cutelo de vegetais é uma maravilha. Desde que aprendi a usar o meu cutelo Suien sem me esfacelar, fazer sopa tornou-se incrivelmente divertido, ainda mais divertido.
Uma das coisas que distingue o cutelo é o peso. Com um cutelo pesado com 22 cm de lâmina, bem balanceado e afiado, basta deixar cair o braço sobre o alvo. A prática dá-nos uma espécie de ritmo musical, lento, marcado pelo som da lâmina a bater na tábua. Quem já viu os vídeos de Liziqi, cozinheira chinesa amadora e campestre, estrela do YouTube (que tem um cutelo majestoso), sabe do que estou a falar.
Para fazer uma cebola em troços com um cutelo, bastam três machadas suaves. Tau, tau, tau. Outros legumes, exigem outras técnicas, mas a eficácia é tremenda mesmo para coisas miudinhas.
Picar alhos, por exemplo. Rápido e fácil. Começa-se por machucá-los com uma padeirada com a lateral da lâmina. Depois, pousa-se o cutelo e usa-se os dedos para o descasque. Por fim, amontoamo-los e picamo-los com movimentos verticais, paralelos à tábua, a lâmina sempre encostada aos nós dos dedos, as falangetas sempre recolhidas, na posição de garra.
Quanto à faca de chef, a lâmina costuma ter entre 20 a 24 cm de comprimento e ser abaulada. A curvatura da lâmina de uma faca de chef ocidental é mais acentuada para tornar suave o movimento de corte em que a faca é deslizada para baixo e para a frente, com o bico encostado à tábua.
A ponta afiada da faca de chef permite também trabalhos finos, e a largura da lâmina, sempre com mais de cinco centímetros, tanto serve para fatiar um lombo de salmão, desmanchar um frango ou servir de pá para vegetais a caminho da panela da sopa. A faca de chef é a mais polivalente das facas.
A questão é: que faca de chef escolher?
De uma forma geral, facas compradas em supermercados costumam ser fracas. Para comprar em lojas convencionais, o melhor é escolher lojas específicas de hotelaria, cutelaria e cozinha, ou grandes superfícies com departamentos nesta área.
Alguns exemplos: Nortel, El Corte Inglés (secção cozinha), César Castro, Pollux. Todas costumam ter variedade de modelos nacionais, alemães e algumas marcas japonesas populares, como a Global.
Os preços variam consoante a marca e a proveniência. Uma faca de chef portuguesa da Icel pode começar nos 30€. São facas feitas de ligas metálicas industriais de qualidade, estandardizadas, compradas em bloco em países como a Suécia.
Algumas marcas de renome internacional inventaram as suas próprias ligas. São os casos da Zwilling e da Wusthof, que mantêm em segredo os compostos usados nessas misturas. Normalmente, usam o mesmo aço inoxidável em todos os modelos. São facas que chegam incrivelmente afiadas de fábrica, têm uma razoável capacidade de retenção do fio da lâmina e aguentam os maus tratos da malta lá de casa.
Dentro deste campeonato, da minha experiência, as que têm melhor relação preço-qualidade são as facas da marca suíça Victorinox. Na gama Fibrox, por exemplo, consegue-se uma faca de chef nos 35€. Tendo um cabo mais fraco do que o das concorrentes germânicas (que usam quase sempre micarta, um aglomerado de plástico e fibras diversas, muito resistente) é uma máquina de cortar.
Se quiser uma faca de serra para pão, com uma Victorinox Fibrox ficará também muito bem servido; e se quiser um cutelo todo-o-terreno, idem.
Na verdade, o meu cutelo da Victorinox Fibrox de 18 cm (42€, já com portes, na Amazon) é das facas que mais uso. Para além de cortar estupidamente bem, consegue uma retenção da afiação da lâmina superior às Zwilling.
A forma mais rápida e simples de adquirir facas é através de lojas online, nomeadamente através da Amazon espanhola ou alemã. Os sites das marcas também costumam funcionar bem, por vezes com promoções.
O bicho artesanal
Isto para as facas, digamos, industriais, de massas. Porque depois há as facas artesanais. Outro animal.
Em Portugal, a Lombo do Ferreiro, com epicentro nas Caldas da Rainha e loja online, junta vários artesãos da nova vaga da zona Oeste, onde há tradição na cutelaria desde o início do século XX.
Um dos nomes mais conhecidos é Paulo Tuna. Tuna é um dos cuteleiros preferidos dos chefs portugueses. No dia em que visitei o seu ateliê, tinha sobre uma mesa a encomenda de uma meia-dúzia de facas para o chef Leopoldo Garcia Calhau, da Taberna do Calhau. Mais à frente, na ala dedicada às madeiras e aos cabos, outra remessa pronta a seguir para o restaurante Ocean, no Algarve, do chef Hans Neuner, com duas estrelas Michelin.
Tuna forja ele próprio algumas peças, mas também compra as ligas já prontas a recortar, fazendo depois os acabamentos.
As páginas de Instagram dos cuteleiros portugueses modernos funcionam muitas vezes como lojas online, podendo-se encomendar modelos já feitos ou personalizá-los através do contacto directo com o cuteleiro. Cada faca é única, sendo que muitas vezes são usados materiais recolectados pelos próprios artesãos, como madeira de troncos resgatados do fundo de barragens.
Os preços destas facas podem oscilar entre os 70€ e os 300€.
Isto no campeonato português. Porque depois há o Japão.
Japão, o oásis do facófilo
No mundo dos artesãos cuteleiros não há marcas, há nomes próprios. Um dos mais importantes, senão o mais famoso cuteleiro do mundo, hoje em dia, é o norte-americano Bob Kramer. Kramer desenha também para a Zwilling, com facas de chef a rondar os 400€, mas muitas das suas criações pessoais são vendidas em leilões online, no seu site, por milhares de euros.
Kramer todavia é a excepção ocidental. De resto, os outros grandes nomes são quase todos do Japão. E a razão é simples: não há facas como as deles. As facas japonesas são mais perfeitas, mais bonitas, mais cuidadas.
No Japão, há vilas inteiramente dedicadas à cutelaria artesanal, com dezenas e dezenas de mestres com as suas oficinas. Até há pouco tempo, os chefs ocidentais tinham de lá ir, em romaria, para conseguirem estas preciosidades, mas actualmente já é possível encomendá-las pela Internet.
Há várias lojas online que tratam disso, como a japanesechefsknife.com. Foi lá que comprei o meu primeiro cutelo chinês. Algumas destas lojas têm devotos apaixonados à frente, com canais no YouTube onde fazem unboxings e provas de cortes e tutoriais sobre como afiar facas.
Um dos meus canais do YouTube preferidos é Burrfection, de Ryky Tran, um norte-americano de ascendência vietnamita, que falhou uma carreira como actor em Hollywood e dedicou-se às facas de cozinha.
Ryky experimenta facas, tábuas de cortar, pedras de amolar e afiar. E sugere as melhores compras. É claro que a maioria está depois à venda na sua loja online, com o mesmo nome, mas a verdade é que o acervo de cuteleiros japoneses da Burrfection é de topo e o site tem muita informação sobre o trabalho de cada um deles.
Já lá comprei duas facas e uma tábua de corte e correu tudo bem (tirando o facto de, num dos casos, a alfândega ter-me cobrado cerca de 70€, que não estavam nos planos). No site, temos acesso a todos os dados sobre a faca, desde a liga metálica da lâmina, ao punho, passando pelo método de produção e pelo estilo do cuteleiro.
Rijo como o aço
Entre os detalhes mais importantes numa faca encontra-se, claro, o aço usado na lâmina. Aqui, as escolhas são imensas. Entre os melhores artesãos, usam-se mais de duas dezenas de tipos de aço. Em comum, têm altas concentrações de carbono na composição, o que as torna fascinantes, perigosas e instáveis.
Os tipos de aço premium mais em voga, actualmente, são feitos por uma marca conhecida por produzir vibradores e aparelhos de televisão: a Hitachi. A sua gama Aogami — que deriva em blue #1, blue #2 e super —, tem a capacidade de permanecer incrivelmente afiada durante muito tempo.
Mas é um aço com alta percentagem de carbono, o que significa que implica cuidados na manutenção. Mesmo tendo camadas de compostos inoxidáveis por cima, estas facas têm de estar sempre secas e convém cuidá-las com óleos especiais, como o de camélia, conhecido no Japão como tsubaki.
Para quem quer facas com lâminas excelentes, de nível profissional, mas porventura bem mais fáceis de manter, o meu conselho vai para um tipo de aço em que haja um compromisso entre conforto e dureza.
Um dos aços mais fáceis de manter e melhores é o VG-10, muito divulgado hoje em dia no Japão entre os artesãos, mas também usado por marcas industriais ocidentais, como a Wusthof, nalgumas linhas de topo de gama, como a Classic Ikon ou a Gourmet. O VG-10 tem carbono na composição, mas também outras componentes que o tornam inoxidável e anti-corrosão.
Entre as minhas facas preferidas, com melhor relação preço-qualidade, está precisamente uma Tojiro feita com VG-10. O formato é o de uma gyuto, que corresponderá, no Ocidente, às facas de chef, embora tenha uma lâmina mais recta e mais fina, ideal para cortes delicados e rectos (e para basicamente tudo).
Posto isto, há outras que são objectos de arte. Só tenho uma dessas e guardo-a num local separado. A minha Anryu fica num estojo e só a tiro em situações especiais, quando me quero mimar ou para impressionar visitas.
Do mestre Katsushige Anryu, um dos mais respeitados do Japão, tem o formato de uma petty, ou seja é uma faca pequena, com 15 cm de lâmina, mas muito versátil, perfeita para tarefas precisas como descascar, cortar e fatiar frutas e pequenos vegetais.
O núcleo da lâmina é feito com o tal aço Aogami blue #2, mas a parte externa é revestida com aço inoxidável, técnica conhecida como san mai. O acabamento é em tsuchime, pequenas amolgadelas feitas a martelo, que para além de serem bonitas, ajudam a que os ingredientes se desprendam da lâmina.
Quanto à escala de HRC, medida da dureza de um material, indica 62 a 63 valores, o que é uma brutalidade. As facas com uma classificação HRC mais alta são mais duras e duráveis, mas também são mais difíceis de afiar e passíveis de partirem.
Quanto ao cabo, ele é octogonal, tipicamente japonês, feito em madeira de ébano e corno de búfalo.
Mas isto já não é só uma faca. Já é uma peça de arte. E não é para todos os dias. Nem para principiantes. Até merecer uma Anryu, cometi muitos erros, alguns trágicos.
Tem tudo a ver com o carbono
Depois da minha estreia com o cutelo da Suien — aquele que me fez dois cortes em cinco minutos e me ensanguentou a cozinha —, estava feliz. Apesar de tudo, foi uma descoberta extraordinária. O cutelo era lindo, era um prazer cortar com ele e fazia um som metálico extraordinário quando o tamborilávamos, típico de uma chapa em aço de carbono virgem.
Nesse dia, quando acabei de cozinhar, lavei-o com água fria, sem abrasivos, passei-o pela toalha, deitei-o sobre o cesto da louça, dei-lhe um beijinho de boas noites e fui dormir.
Estava longe de imaginar o que iria acontecer. No outro dia de manhã, ao pequeno-almoço, ao olhar de novo para a faca foi como se me tivessem apunhalado um rim. O cutelo lindo e brilhante da véspera era agora um pedaço de metal baço, manchado e ferrugento como uma ferramenta velha abandonada num celeiro.
Apesar de o ter secado, não o terei feito com o rigor exigido por uma pedaço de carbono bruto, como é o da lâmina da Suien. Acresce que vivo numa casa com mais quatro pessoas, três menores, outra uma mulher com uma notável desconsideração por facas.
Durante o meu sono, essas pessoas terão usado o lava-louças com imprudência, salpicando a minha arma de cortar. No instante em que olhei para o cutelo todo manchado, apeteceu-me chorar.
Sem grande esperança, recorri ao ombro da Internet para me consolar. Fiz uma busca por “how to remove rust from japanese knives”. A Internet não desiludiu.
Num fórum de facófilos descobri a luz. Havia solução. Só tinha de gastar mais 50 euros a mandar vir duas borrachas grandes do Japão, designadas por “rust eraseres”. Essas borrachas conseguiriam apagar as manchas e limpar a corrosão, devolvendo o brilho original à lâmina. Mas implicavam ainda mais investimento. Hesitei. Depois, comprei.
Já não apagava tanto desde o meu último exame de Matemática, no 9º ano. Ao fim de 40 minutos a esfolar a lâmina, a minha Suien ficou como nova.
Até que, há uns meses, o meu filho adolescente decidiu vir cá para casa com uns amigos. Ao almoço, acharam que seria divertido brincar aos cozinheiros e um deles terá tido uma ideia: “Bora curtir com o facalhão do pai Felner!”.
Suspeito que andaram a partir ossos de frango com o cutelo, sendo que se trata de um cutelo de vegetais. O resultado foram três bocas gigantes na borda da lâmina.
Se desisti dele? Nem pensar. Duas horas a trabalhar a lâmina na pedra de amolar, e ei-lo pronto para o próximo embate. Há quem lhe chame patologia.
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
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