Entrevista a Emanuel Sousa [e à irmã, Patrícia Sousa], do Early Cedofeita
É arquitecto mas a cozinha tem-lhe levado parte do tempo e do coração. Com a irmã, Patrícia Sousa, criou três dos projectos mais extraordinários do Porto. Primeiro, apareceu o Rosa et Al, um pequeno hotel de charme, onde acontecem supper clubs; depois o Early Made, com roupa só produzida em Portugal; e o Early Coffee Shop, um dos café mais bonitos do Porto.
Em tudo o que metem a mão, os dois irmãos fazem magia — e não apenas no design de interiores ou na curadoria de moda. É que a comida é mesmo boa, do pão de massa mãe aos croissants, passando pelos ovos, de toda a maneira e feitio, aqui levados muito a sério — sejam os Benedict, os Florentine ou os Arlington.
Sem padrinhos no mundo da gastronomia portuguesa, a sua ascensão tem sido discreta mas consistente. Prova disso é a abertura, recente, em Lisboa, de uma loja Early Made, com café no interior, e o anúncio de uma padaria com a chancela Early, para 2023, no Porto.
A entrevista decorreu na sala privada do Early, um pequeno iglu espelhado, como um ovni, dentro do elegante café instalado em Cedofeita, no Porto.
A irmã de Emanuel, Patrícia Sousa, que era para ter participado também presencialmente na entrevista, estava doente na altura. Já com a entrevista transcrita, decidi enviar-lhe o texto para que pudesse acrescentar, por escrito, os seus comentários, notas, acrescentos. As frases entre parênteses rectos, a itálico, são suas.
De onde vêm os irmãos Sousa e como chegaram aqui?
Nós somos de Espinho, a sul do Porto. Vivemos a infância toda ali à volta, numa pequena aldeia chamada Guetim [No limite do distrito do Porto, entre a casa dos avós em Grijó e a nossa]. Mas íamos muito a um café no centro de Espinho, que tinha um ambiente de grand café. Era aquela ideia dos anos 50, das pessoas saírem para tomar café [Comprar o jornal e passar a tarde ao som de conversas alheias]. Notava-se que era um espaço muito grande, com mesas muito repetitivas e janelões enormes por onde entrava muito sol no início da tarde, virado a sul e poente. O ambiente era de pessoas a ler o jornal e a tomar café. E é engraçado que, se calhar, essa ideia esteve na génese do que nós criámos ou quisemos criar aqui: um café ou um bistrô que fosse correr o dia todo. [As revistas eram uma das atrações do Early, no início. Foram retiradas com a pandemia. Hoje, com o formato dos computadores e ipads, caiu em desuso].
Mas vocês começaram com o Rosa et Al, certo?
Sim, o Rosa abriu em Agosto de 2012. Foi um dos pioneiros do alojamento local, que nessa altura ainda não era tão grande na cidade. Foi assim que nós entrámos nesta aventura da comida [Queríamos criar uma experiência total: chegar a casa, integrar as rotinas dos visitantes, do pequeno-almoço até ao último cocktail antes de dormir]. Mas as pessoas tinham alguma resistência a entrar num hotel para comer [Um espaço que era um hotel e, como tal, era entendido pelos locais como sendo só para estrangeiros]. Daí termos aberto o Early. Nós queríamos também qualquer coisa que fosse de porta aberta [Acessível a todos], um café que fizesse parte do quarteirão. Demorámos muito tempo até encontrarmos este sítio. Demoramos sempre muito tempo até encontrar os sítios que nos enchem as medidas.
Quem são os vossos clientes?
No Rosa, a maior parte é clientela internacional. Desde sempre. Os clientes nacionais que temos são pessoas à procura de um sítio especial para comemorar qualquer coisa [Para se sentirem especiais]. Em todo o caso, quisemos logo criar a ideia de uma townhouse e não de uma guesthouse. Queríamos que fosse algo integrado na cidade [E na comunidade local].
O que fazia antes de entrar na área da restauração e da hotelaria?
Vivia fora de Portugal há cerca de dez anos quando voltei para o Porto. Sou arquiteto de formação e continuo a praticar. Andei pelos EUA, fiz o doutoramento em Londres. Foi aí que acabei por me habituar muito à cultura do brunch, que cá não estava ainda implementada. Quando abrimos, começámos logo a fazer brunch à carta. Foi uma luta com os clientes nacionais, porque estavam habituados a uma ideia de brunch que se confundia com a ideia de buffet hoteleiro: com o bacalhau com natas, com a vitela assada. Nós sempre quisemos fazer um brunch à la carte e que fosse o high standard anglo saxónico, ou seja, com os pratos de raiz que estavam na génese da ideia de brunch quando ela começou, no final do século XIX, início do século XX.
[Eu tive uma carreira nacional na gestão de activos para a Sonae e Amorim, sou economista de formação – mas queria no Porto o que vivia quando viajava para as grandes capitais.]
O que não podia faltar nesse brunch?
Os feijões, os ovos, sobretudo os ovos. Tínhamos estudado a receita original dos Benedict, dos Arlington, dos Florentine. Fizemos todas essas variações. E depois, quando uma pessoa vive muito em Londres, mais do que a cultura anglo-saxónica, recebe uma série de culturas que estão agregadas. Essa experiência também nos deu uma abertura do palato diferente, que acabou por reintegrar sabores portugueses com técnicas internacionais.
Os portugueses não percebiam o conceito desse brunch?
No início, não. Perguntavam: O que é isto de brunch à la carte? Onde é que a gente tem os pratinhos para ir tirar.” [“Mas isto é o almoço? Ovos? Não há carne, peixe?]
Não funcionou com a clientela local?
Eu acho que tinha que ser uma clientela local que tivesse uma experiência internacional, ou seja, que tivesse já um contacto com a verdadeira cultura do brunch. Mas conseguimos um nicho de mercado. Na altura, a Time Out e outras revistas apelidaram-nos de experts em brunch. Foi uma luta, mas foi interessante também adaptar, ajustar. Quando nós pegámos no high standard do brunch, quisemos fazer com produtos portugueses. Os Benedict, que são feitos normalmente com bacon, nós fazemos com presunto bísaro, por exemplo. Fizemos pequenas alterações que tiveram que ver com a nossa herança portuguesa.
Como é que reage à crítica de que vocês praticam preços altos?
Nós tentamos não ajustar demasiado o conceito a um preço, porque também achamos que estamos a oferecer algo distinto. Não quer dizer que os outros não utilizem bons produtos ou que a execução seja menos boa do que a que nós fazemos. Mas acho que o brunch se tornou muito no everything in a bowl, o que para nós não faz muito sentido porque é quase a miniaturização do buffet, a redução do que é um brunch com vários momentos, ideia que está na génese do conceito, quando ele começou a ser testado nas cidades mais cosmopolitas. Mas acho que a questão do preço é uma ideia errada. Acho que se gasta tanto dinheiro aqui como se gasta, às vezes, em sítios em que parece ser mais barato.
[O preço é uma categoria ilusória e uma péssima definição de uma experiência. Acho as críticas pobres quando se reduzem ao preço. Gosto especialmente daquelas, é tudo muito bom, mas caro…]
Não me referia só ao brunch. Um croissant, por exemplo.
Se eu tiver uma indústria a fazer croissants, eu consigo reduzir imenso o preço. Se há uma equipa de duas, três pessoas, que fazem croissants à mão todos os dias, a escala de produção não permite que eu baixe o preço.
[Além deste modo de vida, sou também artesã. E pelo facto de em Portugal todas as avós fazerem crochet, as pessoas acham que o que eu faço é caro. A desvalorização dos processos manuais é um “fado” em Portugal.]
Mas o resultado é distinto, é melhor?
É isso que nós queremos.
[Distinto sim. Cada croissant é único. Será inconsistente e uma experiência sempre. Há que respeitar a fermentação conforme cada estação e cada dia. Assim como os dias são diferentes, também nós somos produtos de cada contexto. E, assim, cada experiência é única.]
Isso também tem a ver com as matérias-primas que usam?
Nós tentamos que haja mais ligações próprias com fornecedores específicos, nomeadamente locais, regionais e nortenhos, que é onde nós nos focamos.
[Sim, claro. Uma batata não é sempre igual em sabor, tamanho ou forma. Fala-se tanto da originalidade, mas depois contesta-se os resultados do processo de ingredientes e processos que são únicos e irrepetíveis.]
E conseguem isso?
Quase sempre. Mas, por exemplo, na área dos vinhos, em que nós temos apostado mais em vinhos naturais, estamos a ter dificuldades em conseguir captar produtores novos portugueses. E por isso estamos a abrir o leque à Ibéria.
[Tentamos e procuramos sempre novas opções, diversas e únicas. O que queremos oferecer é algo novo, inesperado, que seja uma oportunidade para contar uma história ou apresentar algo que nunca fizemos.]
Mas já há uns quantos produtores portugueses nos vinhos naturais.
Sim, mas na génese da ideia queríamos ter dez marcas de Norte a Sul e Ilhas, sem repetir os vinhos. Só comprávamos duas caixas de cada vinho. Depois acabou. Queríamos que fosse sempre uma antevisão de coisas novas que estavam a aparecer, coisas que ainda não estavam disseminadas. Ao final de dois, três anos, começámos a perceber que era impossível restringirmo-nos a Portugal [E mantermos sempre uma oferta nova].
Tanto o Emanuel como a Patrícia vêm de áreas diferentes, fora da cozinha. Como é que chegaram aqui?
A Patrícia era economista, foi asset manager durante muito tempo de grandes empresas internacionais: Sonae, Amorim, principalmente no real estate, no imobiliário, porque ela esteve ligada ao boom dos shopping malls, sobretudo durante os anos 2000.
Era outra dimensão, um mundo completamente diferente. Falamos de grande distribuição, aqui de micro-distribuição.
A Patrícia já tinha quase uma década e alguns anos a trabalhar na área do imobiliário e dos shopping malls. Naquela altura, também nos shopping malls, enquanto implementação direta numa cidade, eles começavam a decair em Portugal, pré-anunciando a crise dos anos 2008 e seguintes. Na altura, quando a Patrícia decidiu mudar de vida, ela também estava farta de viver num mundo em que conhecia os hotéis só pela chave da porta, porque vivia entre Lisboa e Madrid e andava em viagens pela Europa, onde a Amorim estava já a investir.
[Foi uma decisão de vida: adorei enquanto fazia criação de novos projectos mas depois da crise de 2008 tudo se tornou demasiado cashback e queria sair deste modus operandi financeiro e descobrir outra forma de criar experiências].
Eu e ela já tínhamos o hábito de ir ver propriedades antigas. Foi uma coisa que sempre nos interessou e, numa dessas alturas, visitámos o Rosa e foi uma questão de investimento. A Patrícia foi fazer uma pós-graduação em Administration Hospitality Management, em Marbelha, e depois esteve a estagiar um ano e meio como duty manager, em Londres.
[Quando se comprou a propriedade, não se tinha ideia ainda do que viria a ser – mas como eu estava sem projecto, e porque víamos tantos turistas a chegar à cidade e sabíamos que não havia uma proposta diferenciada, achámos por bem aventurar-nos. Se não fosse uma boa aposta, não havia muito a perder, era uma casa.]
Os vossos projectos são sonhos tornados realidade ou são projectos económicos?
Nós temos projectos sustentáveis, não são projectos capitalizadores. Pagam-se, são projectos um pouco acima da linha de conforto para um negócio, não são projectos que criem lucros desmedidos.
[São desejos de ver a cidade oferecer o melhor a quem nos visita, de ver a cidade evoluir com qualidade e projectos que se diferenciam, que podiam estar em Londres ou Berlim. Temos a preocupação de não nos endividarmos e de reinvestir em novas criações.]
Não vão enriquecer, é isso?
[Não é o foco, mas queremos viver bem e de forma equilibrada. Estas áreas não são de investimento, são de gestão de recursos. Especialmente na área da restauração, estamos a falar de mão de obra intensiva e de stocks de materiais perecíveis ou de pouca duração.]
Preços altos não significam mais lucro, no caso, mas mais custos fixos. As pessoas pensam: mas isto é só um croissant, mas isto é só pão com ovos. Mas há rendas (e este espaço não é nosso), há staff, [os impostos e as perdas do material], há os ovos, que são especiais e se pagam três a quatro vezes acima da média. E eu percebo que as pessoas que façam compras todos os dias e se questionem: como é possível isto custar isto, quando eu compro o pão na padaria que sai a 20 cêntimos.
Como é que se passa essa ideia de que o vosso produto é diferente?
Eu acho que se experimenta uma vez. E a maioria das pessoas percebe. Acontece muito isto. A pessoa vem cá, acha caro. E se calhar até fica três meses sem voltar. Mas volta. E não deixa de voltar. Acontece muito.
Quem é que faz as contas? É a Patrícia?
Sim, ela faz mais do que eu.
[Fazemos ambos, o Emanuel faz as contas de todas as invenções, a cada semana, e as contas de como vamos alimentar esta máquina de criação contínua.]
Vocês são vistos como outsiders na área. Isso é mau ou bom?
Quando se vem de áreas distintas, somos vistos como outsiders. De onde é que estas pessoas caíram? Porque não há esta linhagem natural de amizades, de relações e, portanto, às vezes é muito mais difícil, principalmente em Portugal, ser reconhecido. Ou seja, somos reconhecidos pelos clientes, somos conhecidos pela imprensa internacional.
[Às vezes é apenas injusto, mas vivemos bem com isso. Afinal, o que precisamos é de estarmos de bem com a vida e com as ações com que contribuímos para a sociedade.]
A imprensa internacional dá-vos mais espaço do que a nacional?
Muito mais.
Tem a ver com o quê?
Eu acho que é a ideia das quintinhas. Mas eu acho que já passei por diferentes métiers e na arquitectura nota-se também isso. É normal que se crie uma ideia, como uma família. Eu acho que em todos os sítios é assim, mesmo nos circuitos académicos. São supostamente imparciais e super regulados e, no entanto, nota-se que os nichos familiares ou os nichos de relação directa são muito próprios.
[Tem a ver com o facto de termos uma vida independente do networking instalado. Tivemos carreiras sem berço e sem a natural geolocalização. Tivemos que ir fora para criar espaço nosso.]
Não são vocês também que não se querem misturar, que não se identificam com o outro grupo?
Acho que não. Não sentimos a necessidade de ser introduzidos no grupo. O que sentimos é alguma dificuldade, de vez em quando, por haver uma falta de reconhecimento mais directo da eventual qualidade dos projetos que vamos montando. Quando uma pessoa faz um discurso distinto, é sempre vista como uma ovelha negra. Mas não tem acontecido em termos internacionais, isso é um facto.
[A verdade é que deixámos de procurar fazer parte do grupo, claramente. Quando lançámos o projeto em Portugal, lembro-me de ir à procura de chefs e especialistas em hotelaria e de sermos ridicularizados por muitos. Diziam que não ia funcionar, que não era assim que se faziam as coisas aqui. Então, a verdade é que pagámos pelos nossos erros e pela nossa independência. Quando abandonei a minha “carreira de sucesso”, as pessoas tinham pena de mim por me verem servir à mesa. Somos do fazer acontecer.]
O facto de não terem um chef ou alguém que vos represente publicamente é um entrave?
Ainda bem que falou nisso, porque quando nós falamos com pessoas, sejam estrangeiros ou nacionais, perguntam-me sempre: “Mas porque é que o Emanuel não é o porta-estandarte? A cozinha vem de si. Porque é que você não se assume como o chef que está por trás do projecto? É preciso percebermos que, quando nós criámos o Rosa, não imaginámos que eu iria estar na cozinha todos os dias. E se não estava na cozinha, não era o cozinheiro ou não era o chef. Esta é uma ideia imberbe, digamos, de um outsider que chega a um métier. Mas foi o que aconteceu. E aconteceu também porque no Rosa et al, o “et al”, como acontece na academia, refere-se a outras pessoas. Sempre achámos que o Rosa, mais do que sermos nós os dois, eu e a Patrícia — porque a Patrícia também cozinhou nos primeiros tempos —, seria um grupo de artesãos.
Se calhar também advém de nós virmos de outros percursos: de não termos a validação de ter o curso de chef de cozinha de primeira ou o que fosse; fiz o curso, agora sou chefe e tenho uma equipa de cozinheiros. Na realidade, é isso que acontece agora, mas nunca senti essa necessidade de me apresentar assim publicamente, talvez porque pratico em paralelo duas profissões. Continuo a fazer projectos de arquitectura, alguns de grande dimensão.
[Isto dos chefs é uma moda, porventura uma individualidade que não partilhamos nos nossos projetos. Quando sai um chef há todo um remarketing que a nós não nos assiste. Aqui somos nós e quem faz parte da equipa, e é um work in progress de muitas colaborações].
E chegou a dar aulas na faculdade, certo?
Cheguei a dar aulas enquanto fazia o doutoramento. E estive envolvido no curso da Católica de Viseu e também no da faculdade aqui no Porto, durante algum tempo.
Como tem sido a aprendizagem na cozinha?
Tem sido de tentativa e erro. Sempre optámos por fazer assim, no meu percurso de cozinha. São ajustes. Às vezes idealizamos uma coisa e não percebemos as dificuldades.
Um exemplo?
Eu fiz desenhos de cozinhas sempre do ponto de vista arquitectónico. E uma cozinha tem truques de funcionamento que, como arquitecto, há uma parte estética que compreendo, mas há certas coisas que falharam tanto no Rosa como no Early. Os projectos de arquitectura de interiores são meus mas há certas coisas que só percebemos que estão mal quando a operação começa. Portanto, se facilitaria ter estado antes numa estrutura de restauração? Sim.
Mas foi interessante ver a capacidade de resiliência, de ver o projecto a médio prazo. A Patrícia diz: “Nós somos corredores de maratona, não somos de sprint. Nós fazemos um projeto com sustentabilidade, mas em que não temos que ter todos os resultados nos primeiros dois anos. É um estilo de vida e não um negócio.”
Falemos de comida, então. A vossa padaria e pastelaria é óptima. Quem faz?
Eu e uma cozinheira, na cozinha de produção do Rosa. Todos os dias, fazemos produção para os dias seguintes.
Foram vocês que chegaram àquelas receitas?
Sim, eu estava muito tempo na cozinha. Sempre fui um menino de casa.
Sempre tivemos sourdough [massa mãe] em casa. Mas foi quando fui fazer Erasmus que comecei a praticar. Tinha 21 anos quando fui para Delft, na Holanda, e passado dois meses tive que começar a cozinhar, porque não conseguia sobreviver só com as coisas que comprava no supermercado. Na Holanda aquilo era tudo pré-congelados. Descobri as feiras locais, descobri os ingredientes, quando tinha dúvidas telefonava à minha mãe. E a Holanda também foi uma abertura de portas muito importante. Foi um primeiro contacto com comidas que eu não tinha oportunidade de experimentar aqui.
Passados três meses, a minha casa era conhecida como a “casa do português”, era o sítio onde se faziam jantares para muita gente. A certa altura, pensei: “Não vou estar a cozinhar para esta gente toda. Vocês querem comer cá em casa, venham mais cedo para fazer as receitas comigo e depois comemos todos juntos.” Às vezes havia 20 pessoas, 30 pessoas na cozinha, e isso era interessante porque toda a gente ajudava. Houve aqui um sentido também comunitário, de fazer comida.
Mas voltando ao pão.
Quando abrimos o Rosa, começámos a fazer pão de fermentação lenta e criámos a nossa massa mãe, que agora tem dez anos, e que se chama Rosa, que é todos os dias alimentada. Mas acho que aí houve um processo mesmo de aprendizagem pessoal. Quando eu estava em Londres, fiz um curso de dois dias com o Bertinet [Richard Bertinet, da Bertinet Bakery] sobre pastelaria. Foi a primeira vez que fiz um croissant…
E percebeu a quantidade absurda de manteiga que aquilo leva…
Isso [risos]. E que é por isso que a gente gosta tanto deles. E foi a única experiência de facto de um workshop gastronómico ou de cozinha que fiz.
Gosta de comida tradicional? Quais são os seus pratos favoritos?
Sim, a minha família é muito tradicional. Gosto de sarrabulho, gosto de todos os pratos nortenhos, quase sem excepção. Não como muitas tripas, mas gosto imenso de peixe. Faço quilómetros para comer bom peixe, adoro restaurantes como o Salta o Muro. Gosto muito de ir a Matosinhos comprar peixe para cozinhar. Eu faço viagens pela gastronomia, às vezes dois, três jantares no mesmo dia.
As últimas boas experiências?
O La Latteria, em Milão, foi uma óptima experiência.
Há algum prato que seja uma bandeira vossa?
Eu acho que há uma coisa muito difícil de se retirar da carta: nós fazemos ovos de múltiplas formas. O cozinheiro odeia fazer ovos, que é a única coisa em que não consegue fazer mise en place. Na cultura gastronómica, no serviço de pequenos-almoços, os ovos são das coisas que qualquer cozinheiro odeia porque não consegue ter nada preparado. Os ovos têm que ser feitos na altura, senão não funciona. E isso nota-se quando estamos a contratar pessoas e lhe explicamos que terão de cozinhar ovos. Todas estas coisas que envolvem manipulação direta e que não fazem a segurança do cozinheiro, coisas que implicam não estar tudo pronto, afastam os cozinheiros. Mas eu acho que nós fazemos isso muito bem.
[Ovos, panquecas, croissants e scones]
E a qualidade dos ovos é importante?
São cuidados e sempre validados com o fornecedor: de onde é que vêm, o que as galinhas andam a comer, se andam ao ar livre.
Fale-me dos vossos supper clubs.
Nós começámos este projeto aqui, com o pós-pandemia, sempre com menus diferentes, com três a quatro momentos, entre amuse-bouches, pratos principais e sobremesa. Às vezes são coisas muito tradicionais, portuguesas, reinventadas, feitas num modelo de degustação; outras vezes são coisas internacionais, técnicas novas que nós interpretamos com produto português.
Já experimentámos servir esses jantares aqui, no Early, de forma regular, mas não funcionou. No Porto, o sítio onde se toma o pequeno-almoço não é o sítio onde se janta. Essas bitolas, que internacionalmente não dizem nada, aqui custam a entrar. Mas também houve uma dificuldade, da nossa parte, em que o Early fosse lido mais como restaurante todo o dia e menos como coffee shop.
Gostava que me falasse também do vosso livro, que descobri só quando cá vim ao Early.
Isso acontece muito por acaso. Os nossos projetos são escondidos. Mas eu acho que às vezes é uma dificuldade nossa. Bem, mas o livro aconteceu nós
já tínhamos algum tempo de existência, uns seis anos, e um editor de Malmo, da New Heroes & Pioneers, ficou connosco uns dias no Rosa e gostou muito. A editora dele faz livros artísticos, de fotografia, livros de arte de pequena produção. Ora, passados uns dias recebemos um e-mail dele a dizer que gostava de fazer um livro sobre a nossa oferta de cozinha. “A nossa editora normalmente não faz livros de cozinha, mas eu gostava mesmo de iniciar este projeto convosco”, disse-nos. E foi quando começámos esse projecto. Depois, tivemos quase um ano de preparação. Entretanto, fotografámos com uma pessoa da confiança da editora, que era o Daniel Zachrisson, que passou connosco uma semana e meia a fotografar cá e depois ainda fomos fotografar umas coisas que faltavam a Malmo. O livro acaba por ser, mais do que um livro de cozinha, um livro de histórias à volta da comida, ainda que com tónica na comida de brunch, para que o leitor tivesse uma perspetiva de algo que pudesse preparar em casa todos os dias.
Foi o Emanuel e a Patrícia que o escreveram?
Sim, fizemos em conjunto.
Mas o livro não tem distribuição em Portugal, pois não?
Tem distribuição internacional. Depois temos alguns exemplares em pequenas livrarias, digamos assim, ou pequenos projetos que querem ter o nosso livro. A distribuição é internacional, apesar de estar também em algumas plataformas, tipo Amazon (acho que ainda se encontra aí algum algum stock).
Muito bem. E projectos para o futuro?
Há alguma potenciação da parte da padaria, que é provável que aconteça em 2023.
[Muitos projectos, alguns já em andamento e outros em carteira, que podem acontecer a qualquer momento.]
Vão abrir uma padaria com venda directa, é isso?
Sim, porque sentimos que as pessoas vêm aqui, muitas vezes, só comprar pão. Com certeza que em 2023 vai haver notícias de uma coisa ligada à massa e à massa mãe.
E pensam reproduzir o modelo do Early?
As pessoas dizem: porque é que não têm isto em Lisboa, em Amesterdão?
Não surgiu. Se calhar é uma incapacidade nossa também de organizar esse tipo de franchising, de escalar a operação. E já surgiram investidores, em pequena escala, mas nunca chegámos a decidir que estava na altura certa. Eu não sei. Nós abrimos em Maio de 2022 uma loja em Lisboa, do Early Made, que é uma loja de roupa, e abrimos um pop up do Early dentro dessa loja, ali na zona do Poço dos Negros. Encontrámos em Lisboa um sítio que é uma antiga mercearia, toda em mármore, do início do século. Há uma vontade de ir para Lisboa com o café Early, mas nunca será nada igual ao que fazemos aqui e nunca haverá urgência.
E está sintonizado com a sua irmã?
Sim, nós damo-nos bem. As pessoas às vezes perguntam-nos: “é fácil teres um negócio com a tua irmã?” Nós temos uma relação muito forte. E isto é mais do que um negócio.
[Somos uma combinação de diferentes competências e personalidades, e confiamos no outro. Além disso, temos o mesmo foco: criar e fazer acontecer. E o que falta a um, o outro tem excesso – o que faz de nós um dupla de recursos muito equilibrada.]
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
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