Entrevista a Rita Santos
Proprietária da Comida Independente
A proprietária da Comida Independente tornou-se numa figura importante da gastronomia nacional, nos últimos anos. Vinda de grandes empresas, como a Microsoft, decidiu abrir uma pequena loja, em 2018, no bairro de Santos, em Lisboa, que haveria de se transformar num ponta-de-lança de “grandes produtos de pequenos produtores”.
Os valores da ecologia, da produção sustentável, do terroir, do artesanal foram a base da filosofia da marca, que entretanto passou a apostar nos chamados vinhos naturais ou de intervenção mínima, área que hoje representa grande parte das vendas, e que se tornou numa bandeira da loja
Já em plena pandemia, Rita Santos, 48 anos, quis ir mais longe e promoveu um mercado de rua na Praça de São Paulo, com o mesmo tipo de curadoria que fazia para a sua loja. Esse mercado transferiu-se, há algumas semanas, para uma pequena travessa pedonal junto à Comida Independente, mas o espírito é o mesmo.
A entrevista decorreu na véspera de mais um desses mercados, com vista para a rua. Rita serviu dois copos de um branco da casta Palomino e foi procurando responder às perguntas sem deixar de ir cumprimentando os clientes que entravam pela porta. Parte do seu sucesso resulta desta postura.
Como está a ser a experiência na Comporta?
A Comporta é um sítio em construção. Acho-o fascinante, mas talvez não pelas razões mais óbvias. Claro que tem uma natureza linda, paisagem de dunas, pinhal, arrozais, mar, isso tudo que já sabemos. Mas o fascínio é o de um sítio à espera de acontecer. Tem dinâmicas de Far West. Há os que já lá estavam — fazem questão de o referir — e os recém-chegados. Destes, há de tudo: oportunistas, românticos, visionários e pragmáticos. Curiosamente, os nossos clientes na Comporta são muito consistentes com aquilo que já tínhamos em Lisboa. Não estão tão preocupados com um luxo elaborado, mas preferem a simplicidade. Bons produtos, boas conversas.
Que produtos lá se vendem? O conceito é o mesmo do da Comida Independente?
Para selecionar os produtos desta loja, tirámos partido do corpo de trabalho existente e acrescentamos alguns produtos locais: pinhão de Alcácer, arroz da Herdade do Portocarro, azeite de Ferreira do Alentejo, mel de Vila Nova de Mil Fontes, vinho da Herdade do Cebolal, em Vale das Éguas, já em Santiago do Cacém. Agora no Inverno tivemos que fechar, por não termos equipa disponível, mas estamos a preparar o próximo ano.
Haverá dinheiro para gastronomia premium num cenário de crise mundial?
Acho que a crise mundial tem consequências muito imprevisíveis, porque acumula uma guerra em cima de dois anos de pandemia, com custos sociais sem antecedentes. Mas os 1% não serão sequer beliscados por isso. Haverá seguramente dinheiro, a dúvida é para onde ele vai ser canalizado: para que geografias, para que propostas, com que linguagem. Tenho as minhas ideias.
E o turismo, até que ponto estão as suas lojas dependentes dele?
Tanto na Comporta como em Lisboa, acho que recebemos mais viajantes do que turistas. Explico: os turistas da check-list não chegam a perceber que nós existimos. Para dar com a Comida Independente é preciso ter lido certos guias ou recomendações e ir dar a uma rua escondida por trás do Conde Barão, com uma seleção de vinhos muito alternativa, uma equipa que fala do que fazemos com propósito, um serviço muito informal e simples. Para isto é preciso vir com tempo e com uma cabeça aberta e curiosa.
O crescimento dos produtos biológicos, regenerativos, sustentáveis está em risco com a crise?
Acho que não está em risco, antes pelo contrário. Acho que haverá mais gente interessada em investir nesta direção. Mas é preciso passar das intenções à prática e parar de pensar no curto prazo.
Como é a sua relação com produtores?
A minha relação com os produtores tem-se vindo a construir com o tempo. Tenho aprendido muito neste campo, nomeadamente com o Mercado de Produtores, que começámos em 2020, em plena pandemia, e ainda subsiste agora na Travessa do Cais do Tojo, junto à nossa loja. Temos pouca cultura de colectivo – somos um país pobre, preocupado em subsistir — e muitos traumas do passado neste campo — desconfiado, cheio de ideias feitas. Como é que se combate isso? Fazendo. Tenho esta ideia de estar a falhar desde que comecei. Mas vamos falhando melhor, como o Beckett.
E novas descobertas, o que a tem entusiasmado?
Na Comporta, mais concretamente em Alcácer do Sal, conhecemos a Mariana Viera, uma argentina com uma história mirabolante (sobreviveu a um furacão) que faz chutneys, compotas, chimichurri. Provamos muitas coisas destas, projectos bem intencionados, mas que me frustram muito porque não se distinguem minimamente: as frutas muito cozidas, demasiado açúcar, perdemos totalmente a noção da fruta em causa. Com a Mariana não. Sentem-se as texturas, os temperos são verdadeiramente equilibrados. Um achado. Chama-se Delícias do Bosque. Nos vinhos, temos estado muito encantados com a Alsácia. É umas das regiões que considero mais acessíveis e diversas.
Voltando ao início de tudo. Vem de uma área completamente diferente da cozinha, certo? Já tinha feito muita coisa antes de vir para a área da comida. Porquê a comida?
Essa é uma questão que me colocam muitas vezes, há uma certa surpresa e, até, uma certa curiosidade em relação a mudar de vida. E eu acho que, na realidade, a mudança não é assim tão grande, porque o que eu sempre fiz foi gostar de me aventurar a resolver questões e, digamos, a explorar mundos desconhecidos. Mesmo nas empresas, sempre trabalhei em inovação, sempre trabalhei em resolver problemas nas empresas de tecnologia e telecomunicações por onde passei.
Já teve empresas suas, antes?
Não. Esta é a primeira vez que tenho uma empresa minha. Durante 22 anos trabalhei no mundo corporativo. Mas, na realidade, tudo o que fiz nestas empresas tinha muito a ver com áreas de ponta, onde era preciso desenhar, num papel em branco, o que se iria projectar para o futuro. Não estava sozinha, claro. Havia muita gente a ser consultada, mas eu sempre procurei esses espaços de criação e isso sempre me atraiu. Portanto, na realidade, eu acho que não parei de fazer isso. Ou seja, mesmo aqui eu tenho estado a tentar resolver problemas, questões operacionais que me são colocadas, e foi isso que sempre fiz, mesmo quando estava na Vodafone ou na Microsoft.
Que problemas, pode dar exemplos?
Por exemplo, o que aconteceu na pandemia. De repente, tivemos uma sequência de situações completamente novas, em que a empresa e toda a operação se teve de readaptar.
A Comida Independente foi uma das primeiras lojas a passar a fazer entregas em casa das pessoas.
Sim, e com isso acabámos por não perder um único dia de vendas. Foi uma situação atípica na nossa indústria, porque passámos de bar de vinhos a take away de mercearia. Substituímos toda a receita que fazíamos em bar de vinhos por uma receita à base da entrega de mercearias e produtos frescos em casa das pessoas.
E funcionou bem?
A nossa primeira entrega aconteceu ainda antes do primeiro confinamento, – mantivemos a loja aberta, não houve lay-offs, os produtores continuaram a vender e os nossos clientes tinham um serviço personalizado de alta qualidade em casa – nesse aspecto funcionou bem. Mas enganávamo-nos muito a preparar as encomendas. Felizmente os clientes eram benevolentes. Adoptámos o estilo ‘war room’ e fomos sempre antecipando e adaptando cada nova fase.
Era o seu lado previdente a funcionar?
Sim, ansioso e um pouco pessimista [risos].
Portanto, quando foi preciso, você já estava na linha da frente para atacar o problema.
Sim. Ajudou que a equipe fosse pequena, muito flexível. Chegámos a servir 350 famílias semanalmente, com entregas em casa. Foi uma operação absolutamente desproporcional para aquilo que era a nossa estrutura. Fizemos um site em 48 horas, um site de e-commerce em shopify.
Portanto, gosta desses períodos de crise e adrenalina.
Enfim, eu acho que estou preparada para eles. Tenho uma boa resistência a esse tipo de situações e uma certa atracção por ver o que é que vai acontecer. Mais facilmente me encontram a agir perante uma situação de transformação súbita, do que retirada, a observar. Mas luto contra essa propensão. Esforço-me por parar e observar.
Como é que passa de uma empresa tecnológica para uma mercearia gourmet e um bar de vinhos?
Quando faço esta interrupção, depois de dez anos na Microsoft, decidi mesmo fazer um período sabático. Saí bem, de forma muito planeada, com muita transparência e abertura. Tenho muito boas relações com todas as empresas onde trabalhei. Tive a sorte de ter lugares de responsabilidade em momentos muito interessantes, de assistir de perto a tomadas de decisão estratégicas que ainda hoje moldam estes sectores. Sinto que fui privilegiada. Não saí por estar revoltada com a corporação. Não. Mas era uma coisa que eu queria fazer. Tinha passado por várias situações difíceis na minha vida pessoal. Tive tempo, viajei.
E a comida aparece onde?
Então, estava de sabática e tinha este grupo de amigos que se reunia na minha casa e com quem tínhamos jantares. E, claro que sim, a comida e os vinhos eram centrais nesses jantares. Foi aí que o plano começou a nascer, dessas longas conversas noite fora sobre as coisas que sentíamos como necessárias.
Na verdade, e acho que isto só percebi mais tarde, é também um percurso pessoal: sem originalidade nenhuma – e ainda bem – venho de uma família onde se gosta de comer bem e de estar à mesa. Vivíamos no Alentejo, em Santiago do Cacém, e viemos viver para Lisboa, no famoso êxodo rural que marca tanto a história recente do nosso país.
A ideia da Comida Independente aparece como uma vontade de revisitar este espaço rural, de província, mas com uma postura alternativa. Rejeitando uma certa tacanhez, um certo machismo, uma certa paralisia, de que me lembro e com que não me identifico. Na minha matriz, começou por estar um desejo de sair, que é comum a muitas das pessoas com esta origem, e depois um desejo de voltar.
No tal período de reflexão, acho que tive, por um lado, estes amigos com quem falava de política, não tanto no sentido partidário, mas no sentido da organização colectiva – e também de ecologia, de espiritualidade, de escassez de valores (não dos valores conservadores, mas dos valores de uma ecologia profunda, por exemplo).
E ao mesmo tempo comecei a sentir vontade de fechar um círculo na minha vida pessoal, ou seja, de fazer uma reconciliação com a minha origem rural, que se calhar não é só minha, mas de um país.
A ideia seria regressar ao campo mas dando-lhe uma linguagem contemporânea?
Sim, trazer esta realidade agrícola e rural para a cidade, sem complexos, sem toda esta carga que nós trazemos, enquanto país com problemas de autoestima, um bocadinho subserviente, estratificado, segregado.
Era a Rita que cozinhava, nesses jantares com amigos?
Eu tenho muitos amigos que cozinham muito bem e, portanto, era assim uma coisa muito colaborativa. Mas eu gosto de cozinhar. Em casa faço coisas mais improvisadas e mais à volta de cozinha asiática.
Hoje, a Comida Independente é uma marca na gastronomia nacional, mas tenho ideia de que não foi fácil, ao início. Certo?
Foi muito difícil, mesmo. No primeiro ano, estávamos numa localização que agora se reconhece como emergente, mas na altura era só escondida [risos]. Mas não foi fácil porque a nossa proposta também precisava de alguma atenção.Tentamos simplificar com uma assinatura, que é: “Grandes produtos de pequenos produtores”. No limite, até poderá não ter a ver exclusivamente com a escala propriamente dita, mas é quase inevitável: quando a escala aumenta há outras coisas que se perdem, sendo que nem todas as coisas que são feitas em pequena escala também são boas. Portanto, havia essa ideia de curadoria e acho que isso acabou por funcionar. Hoje em dia as pessoas percebem melhor o que representamos.
Ir aos sítios onde são feitos os produtos e conhecer as pessoas é parte do segredo do sucesso?
Sim, sim. Eu acho que é mesmo a única maneira de fazer isto. Ir até mais do que uma vez, sobretudo quando falamos de vinhos, que é uma grande parte daquilo que nós vendemos. Acho que é preciso entender a paisagem e a região onde o produtor está inserido — a exposição solar ou a proximidade do mar, por exemplo — mas também a cultura onde ele se move, as questões que o levam a decidir da forma como decide: podem ter a ver com o legado, outras têm a ver com questões puramente práticas e circunstanciais.
E nunca se sentiu enganada nessas visitas? Apesar de tudo, é uma visita anunciada, há um discurso que eventualmente está planeado. Nunca lhe quiseram vender uma coisa muito biológica, muito regenerativa e depois vir a descobrir que não é bem assim?
Desde que há uma popularização maior destes termos, destas coisas que estão um bocadinho na moda, alguns produtores querem colar-se a certos rótulos. E, portanto, às vezes, sim, acho que há uma ênfase em temas onde se diz “o que nós queremos ouvir”. Mas há uma diferença entre quem deliberadamente quer enganar e quem está no caminho, no bom caminho, mas muitas vezes ainda não chegou lá. O trabalho agrícola é muito duro e com muita frustração e muito isolamento, e por isso esses contactos também são muito importantes nesse aspeto, porque também dão um sentimento de pertença a uma comunidade, a um movimento, mesmo que haja erros.
Sente que esta preocupação com produtos feitos de uma forma amiga do ambiente é uma coisa primeiro ética e só depois gastronómica, ou o contrário? Ou melhor: dá mais importância à ética ecológica ou ao sabor dos produtos?
Acho que é um imperativo de consciência colectiva, planetária, e do que estamos a fazer em conjunto. Trata-se da nossa sobrevivência enquanto espécie. Mas depois não é só isso. Rejeito aquela ideia de que agora vamos ser muito éticos e temos de dizer aos outros o que é que eles devem consumir. Quando entramos na lógica do policiamento dos comportamentos, do rótulo, da certificação e de uma certa rigidez do que é correcto e não é… rejeito isso. Acho que as coisas têm que nos dar prazer, têm de nos emocionar, de nos atrair. As coisas têm de me saber bem, de me agradar. Até porque isso é o sal da vida.
Os chamados vinhos naturais são uma realidade muito diferente da dos outros alimentos?
Há mais um sentido de comunidade nos vinhos. O facto de haver procura deste estilo de vinhos fez com que vários produtores tivessem ganho coragem e ousassem enveredar por um caminho de viticultura que se calhar não teriam feito se a procura não existisse. Mas aí nós fomos apenas mais um player.
Um player importante.
Quer dizer, como fomos dos primeiros, talvez.
Os vinhos naturais vão passar de moda?
Acho que há muitas coisas nos vinhos naturais que são uma moda e, como moda, vão desaparecer. Tudo aquilo que é incipiente, que não tem muita expressão e não tem uma qualidade intrínseca, e ainda por cima, às vezes, tem um preço especulativo, não se irá sustentar no tempo. Acho que as pessoas, mais cedo ou mais tarde, percebem que não é por aí. E essa é a parte da moda que o mercado tenderá a normalizar. Mas eu acho que a moda teve uma grande vantagem, que foi: atraiu pessoas completamente novas para o vinho, pessoas que não bebiam vinho de todo começaram a beber estes vinhos muito pouco extraídos, vinhos muito ligeiros, vinhos baços. Este tipo de vinho passou uma mensagem muito interessante e que alterou um bocadinho o status quo.
E depois, do que eu tenho observado, as pessoas começam com estes vinhos, um bocadinho menos convencionais, por este lado um bocadinho pop da tendência dos vinhos naturais, e depois vão querendo saber mais e depois percebem como são feitos e querem mais e começam a beber outros vinhos. No final, as pessoas gostam é daquilo que lhes sabe bem. Que está bem equilibrado, que tem uma boa acidez, que sabe a vinho que é vinho!
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
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