O pessoal de sala na restauração está debaixo de fogo. De todo o lado, se ouvem lamentos. Ricardo Dias Felner auscultou críticos de restaurantes, um dos chefes de sala mais respeitados do país e o presidente da Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril sobre um dos sectores mais frágeis da gastronomia portuguesa. E ficou com uma certeza: o caminho é longo, mas tem de ser feito.
O desabafo apareceu no Instagram, há dias. “Tenho pena das pessoas que sem qualquer experiência dão o máximo que têm. Mas confundem acelgas com acetona. Isso mesmo… não foi o corretor ortográfico. Foi mesmo assim”, escreveu José Manuel Pires, gastrónomo, frequentador de salas de restaurantes por todo o mundo. A mensagem terminava em tom ainda mais grave. “Onde vamos nós parar num país de Turismo, com este amadorismo?”, concluía, sublinhando tratar-se da segunda casa de um chef conhecido do Porto, onde pagou 140€, num jantar para três pessoas.
A experiência está longe de ser um caso isolado e regional. Fale-se com qualquer cliente assíduo de restaurantes, nos últimos tempos, e o mais certo é o primeiro lamento ir para o serviço. Os empregados de mesa tornaram-se sacos de pancada. O pessoal de sala é cada vez mais a ovelha negra da cadeia da restauração.
Os problemas não são todos de agora, nem têm um único infractor. Não nasceram com a pandemia, nem com a guerra — nem será justo imputá-los a quem serve. Há, aliás, quem ache que não há problemas de fundo. “Felizmente, do que conhecemos, as más práticas de serviço são cada vez mais pontuais”, comentou, por escrito, o presidente da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Carlos Brandão, acrescentando: “Portugal é conhecido e reconhecido por receber bem e com qualidade.”
Mas foi o único optimista. De entre os especialistas que inquiri, no sentido de perceber o estado da arte, todos coincidiram no contrário. As más práticas são a regra e o discurso de uma suposta genética hospitaleira nacionalista não encobre a incompetência, a falta de conhecimento, de visão de futuro e de formação que grassa na restauração portuguesa como tatakis de atum e bolinhas de alheira.
Entre o Belcanto e o Ritz
O século XXI viu o turismo permitir mais e melhores restaurantes, mais bonitos e mais diversificados, sobretudo em Lisboa e Porto — isso parece assente. E viu os chefs de cozinha ganharem estatuto, tornarem-se celebridades (muito justamente). Mas a figura responsável directamente por acolher e dar conforto aos clientes permaneceu como um actor secundário, frágil e temporário, cada vez menos comprometido com a função, cada vez menos reconhecido.
Podemos questionar o que é mais importante — se a cozinha, se o serviço —, mas parece evidente que esta desconsideração, esta falta de investimento na sala, tem sido um erro. Que se está a pagar caro.
Tudo começa na forma como se olha para a hierarquia. Alejandro Chávarro, chefe de sala, sommelier e sócio do restaurante Arkhe, em Lisboa, prefere ver a função de chefe de sala como o clássico maître d’hôtel ou director do restaurante. O chefe de cozinha, neste entendimento, não está acima do chefe de sala, cujas competências devem ir além do que se passa durante a refeição e são instrumentais na relação com os clientes. “É a pessoa chave entre o cliente e a cozinha. É por sua causa que as pessoas vão querer voltar e até criar uma ligação, em cada visita”.
Dito isto, Chávarro — que antes de vir para Portugal esteve no L’Astrance, de Pascal Barbot, três estrelas Michelin, e que o crítico de restaurantes Miguel Pires considera ser um dos melhores, senão o melhor, maître d’hôtel do país, “de nível mundial” —, não cristaliza a função na tradição francófona, antes aponta para uma nova geração de profissionais portugueses, “pessoas que têm tido a oportunidade de viajar, conhecer outros estilos”. E dá o exemplo da chefe sommelière do Belcanto, Nádia Desidério, enaltecendo não só as suas qualidades profissionais, como a possibilidade “de ser mãe e poder continuar a sua carreira e ascensão em equilíbrio”.
O exemplo está longe do escolhido por Carlos Brandão. O presidente da ESHTE elege como modelo de serviço um hotel clássico, conhecido pela competência, mas também pela formalidade e rigidez. “Não querendo particularizar estabelecimentos, podemos destacar uma unidade hoteleira como o Ritz, por ter mantido uma consistência de serviço de grande nível ao longo dos seus anos de existência.”
Serviço à portuguesa?
A escolha torna pertinente a questão: será que existe uma forma de servir à portuguesa? Há um relativo consenso de que o serviço clássico em Portugal, de forma geral, assenta na tradição francesa. “Pelo que tenho visto em Portugal em muitos restaurantes, as bases são maioritariamente baseadas no serviço à francesa: protocolo, hierarquia da equipa de sala, organização do serviço à mesa (em alguns casos, au guéridon)”, diz Alejandro Chávarro.
Miguel Pires, autor do blogue Mesa Marcada, acrescenta, todavia, uma nuance. Essa escola francesa estará impregnada de uma certa modéstia, tipicamente portuguesa, por vezes autêntica, por vezes estratégica. “Também temos o chefe de sala e o empregado que pode ser arrogante como o francês, mas eu diria que o clássico/tradicional prima por uma certa imagem de modéstia, sobretudo os mais velhos”, sustenta. Exemplo disso é “o Sr. Nobre [António Nobre, marido de Justa Nobre, do restaurante Nobre, em Lisboa]: está ali para servir e agradar, é hospitaleiro, verdadeiramente acolhedor, modesto, mas também sabe, sem forçar, vender um prato que a cozinha precisa de despachar.”
Já Fortunato da Câmara, crítico de restaurantes do jornal Expresso, duvida que haja, sequer, um estilo de serviço em Portugal. “Sinceramente, não sei. Acho que as falhas de formação são grandes e por isso não chega a haver um estilo, mas apenas muito improviso e a boa-vontade à portuguesa.” Quando questionado a indicar alguém que seja uma referência na sala, recorda Ernesto Azevedo, do Portucale, no Porto. “Tinha o porte e o trato de um cavalheiro à inglesa. Fiz duas ou três refeições quando tinha pouco mais de 20 anos, em que levava o dinheiro contado no bolso, e era tratado por ele e pela equipa de sala com toda a cordialidade e atenção, como se fosse um cliente de sempre.”
Lisboa vs Porto
E diferenças regionais, existirão? Há um serviço à Porto e outro à Lisboa? Fortunato da Câmara considera que a “frontalidade e proximidade” são diferentes nas duas cidades. Miguel Pires faz notar, a propósito: “O nortenho, em geral, é mais simpático, mais afável e mesmo quando é manhoso consegue fazê-lo de uma forma engraçada”. Alejandro Chávarro sintetiza, assim, esse acolhimento no Norte: “Em algumas casas, sente-se uma ligação mais pessoal, às vezes mais gentil e familiar.”
A Norte ou a Sul, o que parece evidente é que são as tascas, os restaurantes familiares, de bairro, os que melhor têm resistido à crise com o pessoal de sala. Na maioria das vezes, é aqui que estão as relações mais antigas e mais fundas, seja entre clientes e empregados, seja entre patrões e empregados. E essa estabilidade e esse compromisso são decisivos para que as coisas funcionem.
Os problemas estão nos restaurantes de fine dining — onde, como como faz notar Fortunato da Câmara, as expectativas são maiores e onde falta qualificação. E, sobretudo, nos restaurantes de cadeia ou na restauração que assenta num conceito, numa estética, imposta de cima para baixo. Será nessa enorme faixa do meio, que não é tasca nem é Michelin, que a acetona é mais vezes confundida com acelgas.
Miguel Pires fala em “conceitos com alguma pretensão gastronómica onde acaba por haver demasiada rotação, logo não dá tempo para dar grande formação ou passar uma cultura da casa”. E faz uma relação directa entre o empenho e as gratificações. O elo mais fraco, nesta matéria, serão as cadeias de restauração, “onde as gorjetas são mínimas ou inexistentes e a vocação para o serviço nula ou perto disso”.
Não são, necessariamente, restaurantes baratos. Estaremos a falar de mesas onde se podem pagar entre 20 e 35€. Mas são restaurantes de empreendedor com ou sem chef, muitas vezes sem noção de como se vende comida, nem da importância da atenção ao cliente.
O que é servir bem
A palavra “atenção” é, aliás, sublinhada por Alejandro Chávarro como sendo o valor determinante do serviço. Tinha-lhe proposto outras: simpatia, rapidez, conhecimento. Mas Chávarro sublinhou — e parece-me que faz todo o sentido — que o mais decisivo é a capacidade de zelar pelas necessidades de quem está à mesa. “A atenção é o elemento-chave, desde o início até o fim, de forma a poder estar sempre a par do que cada pessoa está à procura ou precisa, a cada momento”, defende.
Não espanta, por isso, que Alejandro Chávarro eleja como gesto fundamental, simbólico desse cuidado, algo tão simples como matar a sede. “Nada mais essencial na vida do que saber se o outro, que atravessou a tua porta, precisa de um copo com água.”
Miguel Pires prefere enunciar as qualidades do serviço consoante o tipo de restaurante ou de comida. “Numa carrinha de bifanas, antes da bola, só quero que sejam eficientes, logo aprecio a rapidez. Num restaurante do dia a dia, sobretudo ao almoço, aprecio a rapidez e a simpatia. Num restaurante mais gastronómico, aprecio a eficiência (ter noção do timing dos pratos, o que não significa necessariamente rapidez), a simpatia e algum conhecimento. Num fine dining: o mesmo que o anterior, mas com mais conhecimento, além de que aprecio uma certa graciosidade dos movimentos”.
Em todo o caso, quando instado a dar um exemplo de serviço de qualidade, escolhe precisamente um episódio, passado no restaurante da Fortaleza do Guincho, que demonstra o valor da atenção, a qualidade suprema citada antes por Chávarro. “Depois do prato de entrada, vendo que eu era canhoto, puseram-me os talheres na posição própria para canhoto. Para quem a vida toda teve de se adaptar a um mundo feito para dextros, foi um gesto bonito, que muito apreciei.”
Quando a cozinha entra na sala e vice-versa
Outra questão é perceber-se onde estão as maiores falhas, nas circunstâncias actuais. E aqui os problemas mais flagrantes terão a ver com aquilo que Fortunato da Câmara considera mais decisivo no serviço: o conhecimento. “Um profissional de sala deve ser visto e formado/estimulado, por quem gere um restaurante, como um vendedor qualificado”, afirma.
É que a simpatia é, em grande medida, um talento natural. E a falta de fluidez ou de atenção do serviço pode melhorar com chamadas à razão. Agora o conhecimento sobre o que é uma acelga, sobre a que sabe uma acelga, sobre como se cozinha uma acelga — isso é mais complexo; isso requer uma transformação grande na formação e, também, na orgânica dos restaurantes.
Há uns anos, nalguns bistrôs modernos, começou a ser usual serem os próprios cozinheiros a virem entregar os pratos às mesas. Esse detalhe fazia uma diferença extraordinária na relação com o cliente. De repente, aquilo que costuma ser um momento curto e frio, de entrega de um prato, tornava-se numa conversa sobre comida, mesmo que curta — porque o cozinheiro estava mais confiante nas explicações. Ganhava o cliente e ganhava o cozinheiro.
Se isto pode funcionar, por sistema, se funciona em todos os modelos de restauração? Evidentemente que não, tanto assim que a prática parece ter-se esvanecido. Mas ela mostra como é decisivo o conhecimento sobre o que se serve, da parte de quem serve. Alejandro Chávarro: “Acredito profundamente que numa empresa de restauração, toda a pessoa em contacto com os clientes deve saber o que está a propor para o poder transmitir”, diz o director do Arkhe. “Entender como nascem os pratos e para onde nos levam as ideias.”
Não é para todos
Como se chegou aqui? No jogo das culpas, há para todos os gostos. Os patrões apontam os apoios estatais, responsáveis pela falta de mão-de-obra disponível, e a leviandade com que os empregados olham para a função. O pessoal da sala aponta as más condições do sector, com muitas horas, horários repartidos e pouca remuneração.
Os mais esclarecidos, de um lado e do outro, conseguem distância para compreender tudo isto — mas indicam igualmente a falta de formação actualizada aos novos tempos e a falta de investimento na carreira, quer nas escolas de hotelaria, quer por quem gere a restauração.
Não será culpa da pandemia, nem da guerra da Ucrânia, nem da inflação, que a maioria das estagiários da sala entrem num restaurante sem perspectivas de futuro, sem vocação, sem conhecimento, sem alguém que lhes mostre a importância da hospitalidade, — que lhes mostre o que é uma acelga.
“Temos de transmitir que o nosso trabalho é uma carreira com um potencial real. Temos de ser vectores de formação, vectores de mudança para incrementar salários e dar melhores condições a cada uma das pessoas nas nossas empresas”, sustenta Chávarro, dando o exemplo do trabalho no seu restaurante. “Na nossa empresa, temos criado, há já quase dois anos, um processo criativo totalmente envolvente, em que toda a equipa prova os vinhos que vão ser escolhidos para uma futura harmonização de vinhos em função dos produtos que vão ser trabalhados e as técnicas de cada prato.”
Até que ponto isto tem a ver com o ensino nas escolas de hotelaria? Os dois críticos mostraram desconhecer essa realidade. Mas Alejandro Chávarro tem opinião. Admitindo haver escolas que fizeram um esforço para melhorarem, atira: “O conteúdo e o envolvimento que se dá nas escolas limita-se a um nível básico. Não se prepara os alunos com objectivos e foco para todo tipo de restauração, pelo que os alunos não acreditam na possibilidade de uma real carreira no serviço.” Da mesma forma, prossegue, nem todos os alunos deveriam entrar na escola de hotelaria. “Temos que ser mais exigentes com o recrutamento, porque esta carreira não é feita para todos, tal como não é para todos seguir engenharia, direito ou economia. A restauração não é (…) uma área menor para juntar uns trocos ou para aparecer na televisão. A restauração é, acima de tudo uma via de paixão, excelência e disciplina, todos os dias com a mesma consistência.”
O presidente da ESHTE, tendo assumido apenas “problemas pontuais” com o serviço em Portugal, parece também ciente de que é preciso fazer mais, concluindo: “Há um longo caminho a percorrer, no qual sabemos ter um papel importante, quer junto de quem formamos, quer de quem emprega os jovens que todos os anos saem da nossa Instituição, com formação superior (licenciatura ou mestrado).”
Até lá, a acelga continuará a ser acetona. E assim vamos indo, comendo e rindo.
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
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