Uma cavala em Sagres

A experimentar

Crítica de Restaurantes

Adega dos Arcos

Lá bem na ponta do continente, Ricardo Dias Felner encontrou uma casa simples com os melhores peixes do Atlântico.  

A travessa esvaziou-se em dez minutos e, no final, ainda fui chuchar as espinhas laterais do bicho como se fosse uma armónica. 

Eis um dos mais extraordinários peixes que o Atlântico me deu, algures numa zona residencial de Sagres, bancos corridos e toalha de papel, vista para um descampado e uma algazarra de surfistas germânicos excitados pelo sol algarvio e pelos shots de aguardente.

DR

E que peixe era? Uma simples cavala. Não há outra espécie tão abundante nas águas portuguesas como a cavala. A fama é mazinha: por causa das espinhas, por secar, por ter um sabor forte, por ser indigesto. Acresce, no caso, outra heresia: esta vinha escalada. 

O homem abriu-a à minha frente com uma faquinha de 5 cm de lâmina, um corte fluido e limpo. “As cavalas acabaram de chegar do mar, não se vai arrepender”, atirou. 

Eu hesitara. Na arca, instalada no centro do restaurante, robalos de dois quilos  boquiabertos e tesos, sargos bojudos, carapaus que reluziam como bolas de espelhos, e algumas espécies menos comuns, como o delicioso peixe-porco (já sem pele, danada de amanhar), a anchova ou a “liça” de mar, que a norte se conhece como tainha ou fataça.

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Queria todos. 

Fiquei a apreciar aquele quadro, qual Mona Lisa. A vitrina de peixe é uma instituição portuguesa belíssima e cada vez mais esquecida e maltratada. Apesar de restarem exemplares notáveis (como a do Batareo, em Setúbal; a do Fialho, em Tavira; a do Camelo, na Apúlia; a do Ave Dourada, em A-dos-Cunhados), poucos restaurantes arriscam na exposição da bicharada.

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Há boas razões. Pescado fresco de mar é, por regra, matéria-prima de alto risco. Mesmo os estrela Michelin fazem tudo para evitá-lo. Peixe fresco de mar é caro, é inconstante (no tamanho e na disponibilidade), degrada-se rápido, obriga a contactar fornecedores e a gerir stocks como quem gere acções da bolsa e ainda requer a sensibilidade no manuseio de uma maquilhadora.

Não pode, por isso, haver distracções. O foco do staff tem de estar todo no peixe. E se for preciso comprometer o resto, paciência. Quem se indigna por estar num sítio abarracado, com um menu curto, serviço simpático e conhecedor, se lhe facturarem o preço de um ceviche de salmão por peixe de anzol grelhado na perfeição?  

No caso, a controlar as brasas dos Arcos estava um guineense grande e atento como um boxeur de pesos pesados. Trabalha ali há dois anos, mas mostrou domínio total do carvão, porventura aprendido com o dono do sítio, pescador encartado e mestre do fogo.

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Quando a cavala chegou, todas as teorias sobre peixe escalado desabaram como vagalhos sobre o Cabo de São Vicente. Com o peixe aberto, havia o dobro de superfície tostada, o dobro de reacções de Maillard, o dobro de fumo do carvão, o dobro de goludice. 

O risco — real, enorme — de a cavala ficar seca como cortiça tinha sido domado de forma soberba. A carne estava delicada, sumarenta, suave como as esquerdas que surfara minutos antes na praia do Beliche, mas simultaneamente intensa. Esse sabor, aliás, permaneceria comigo durante o resto da estadia. 

À noite, antes de me deitar, bebi um copo de água da torneira e não queria acreditar. Sabia-me a cavala. “Até a água de Sagres sabe a cavala!”, exclamei, sozinho no quarto do hotel, confuso e atónito. Seria? Ou seria de mim? Ou seria do peixe dos Arcos? 

R. Roça do Veiga, Sagres. 96 029 4290. Ter-Sáb 12.00-15.00, 19.00-22.00


Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista

 

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