“O mar não recompensa os que são por demais ansiosos, ávidos ou impacientes. Estar constantemente a tentar encontrar tesouros mostra não só impaciência e avidez, mas também falta de fé. Paciência, paciência e paciência é o que nos ensina o mar. Paciência e fé. Precisamos de nos deitar vazios, abertos e sem exigências, como a praia que aguarda por um presente do mar.” Anne Morrow Lindbergh
Poucas pessoas sabem que quando colocamos sal num bom naco de carne na brasa, estamos, na verdade, a revesti-lo com dois compostos voláteis e muito perigosos. No entanto, esse acto apenas seria suicida caso os elementos que compõe o sal, o sódio e o cloro, estivessem a solo. Em comunhão de ligações iónicas, juntos, formam o cloreto de sódio – o “vulgar” sal de cozinha, que na realidade é uma das substancias químicas com maior impacto na nossa história enquanto civilização.
O papel vital deste mineral não se limita à química do nosso corpo (a falta de sal conduz a dores de cabeça, enjoos, vómitos, fraqueza muscular e sonolência) mas estende-se ao longo da história humana, temperando os nossos comportamentos. O sal foi o primeiro bem de comércio internacional e uma mercadoria tão preciosa que foi usada como uma antiga forma de “moeda”. Quando percebemos que ele nos ajudava a preservar a comida que havia em excesso e que não poderia ser consumida no imediato (carne e peixe), elevámos a sua fama ao patamar de relíquia.
Há uns tempos quando preparava uma publicação cujo tema também se entrelaçava com o sal, deparei-me com algumas passagens do livro “Salt: A World History” que me fizerem querer conhecer esta evolução conjunta entre humanos e cloreto de sódio. Entretanto consegui ler o livro, que me passeou por entre a extracção da água do mar na China antiga; até o delta do Nilo no Egipto onde as suas propriedades de preservação da carne atingiram um novo nível, através da mumificação de cadáveres (especialmente os de personalidades importantes); passando também pela Roma antiga, onde o sal era sinónimo de poder.
Ler este livro foi um desafio, pois a narrativa para além de estar sempre a saltar de século e país, por vezes sem aparente lógica, tinha o condão de me dar fome e sede… 😛 Por entre o esmiuçar da longa e (não tão) célebre história do sal, o autor, Mark Kurlansky, vai apimentando o texto com receitas nas quais o cloreto de sódio desempenha um papel importante, se não crucial. É um livro fascinante, que inclui todos os tipos de curiosidades relacionadas com o sal, desde os primórdios do Tabasco até a um esquema engenhoso para introduzir camelos nos desertos do oeste americano.
Entre outras pitadas históricas surpreendentes (por exemplo o facto do sal ter tido um papel determinante na independência dos Estados Unidos da América: ao restringir o comércio e atacar as salinas americanas, o Reino Unido desencadeou a guerra naquele continente; ou a revelação de um segredo secular: o da conversão de uma mina de sal de Wieliczka, na Polónia, num vasto complexo de turismo enogastronómico, por volta do século XVII, repleto de salões de baile, salas de jantar e uma lagoa submarina onde a coroa receberia convidados reais) há duas, particularmente deliciosas, ou não estivessem relacionadas com o vinho.
Kurlansky explora brevemente a importância que o sal e o bacalhau tiveram como companheiros de equipa, de modo a tornarem possível a viagem de peixes pescados nas comunidades litorais para outros locais muito longe do mar ou então para sítios onde esses peixes pura e simplesmente não existiam (história essa que é extrapolada mais detalhadamente no livro sobre o “Bacalhau: a biografia do peixe que mudou o mundo”, outro que já está em lista de espera), alimentando, assim, povos que nunca viram uma rede de pesca.
De modo semelhante, esta capacidade de conservação do sal, serviu também aos mais abastados na conservação dos seus vinhos, isto é claro antes da descoberta das rolhas de engarrafamento. Uma pitada de sal no vinho não só o mantinha “fresco”, como também lhe acrescentava um sabor inusitadamente interessante. Depois, na página 159 do livro, havia uma referência a Banyuls, o vinho mais conhecido de uma região vínica no sul da França (Pirenéus Orientais). Deixo-vos abaixo um enxerto do modo como começa essa página.
“O povo de Collioure vivia do vinho e do peixe salgado. Pescavam anchovas de Maio a Outubro em pequenos barcos de madeira que podiam navegar sobre as rochas do porto raso, movidos por uma vela latina… Em Outubro, quando a temporada de anchovas terminava, começavam as vindimas nos socalcos das colinas acima da vila. O vinho, chamado Banyuls, tem uma doçura picante escura que é um contrapeso perfeito para as anchovas salgadas. O povo de Collioure trabalhava no seu canteiro de vinhas, podando-as e preparando-se para o ano seguinte, até que as folhas e os brotos chegassem, e então era de novo Maio, tempo de deixar as uvas crescerem e de voltar a pescar anchovas. Assim, cada família tinha um barco para pescar e um canteiro nos socalcos para as vinhas”.
Mais curiosa que esta relação entre sal, vinho e peixe, é o resultado que esta dieta teve na imunização da vila contra … pandemias. No século XIV eclodiu a peste bubônica, cujas vítimas delirantes morriam em poucos dias, com dores excruciantes. Essa pandemia varreu todo o velho continente, matando 75 milhões de pessoas (a COVID-19 vai com uma décima parte desta infeliz contabilidade), valor esse, que segundo algumas estimativas credíveis, equivalia a metade da população da Europa de então. Número de fatalidades em Collioure?
Zero!!! Muitos historiadores, nutricionistas e epidemiologistas defendem que foi a junção de todos os elementos nessa dieta que os salvou. Provas irrefutáveis deste milagre enogastronómico não existem, mas este par de histórias tem, pelo menos, a mais valia de nos mostrar a bonita e longa relação entre mar, sal, peixe, vinho e humanos. A publicação de hoje centra-se num local que evoca este bonito legado, de modo particularmente eficaz: o restaurante Sal na Adega da AdegaMãe.
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