Crítica de Restaurantes
LAMELAS
Porto Covo recebeu uma filha da terra, que em troca lhe deu novos sabores. A família Lamelas prolonga com brilho a presença na vila alentejana.
Poucos dias antes de almoçar no Lamelas, tinha assistido a Toscana, a tragicomédia gastronómica da Netflix. Uma sinopse muito básica do filme diria o seguinte: um chef Michelin dinamarquês, sob pressão, muda de vida depois de viajar para a Toscânia, Itália, onde o pai fora uma personalidade importante.
Não foi bem isto que se passou com Ana Moura, mas foi remotamente isto.
Hoje com 36 anos, a chef do Lamelas começou por ganhar notoriedade quando estava à frente do Cave 23, no hotel Torel Palace, em Lisboa. Corria o ano de 2015, quando aí se estreou, vinda de uma temporada no restaurante Arzak, o famoso três estrelas Michelin do País Basco. Ana tentou aqui uma cozinha de fine dining ambiciosa e complexa, quando tinha apenas 27 anos. E logo foodies e gastrónomos a colocaram nos píncaros, vaticinando-lhe um lugar na vanguarda da culinária lusa.
Durou, todavia, pouco a estadia no Cave 23. No início de 2017, Ana viria a sair do restaurante, desalinhada com os proprietários. Numa carta publicada no Público, onde anunciava as razões pelas quais se demitia, a chef despedia-se com uma profecia: “Agora continua o sonho de um dia abrir o meu restaurante.”
Ora, o sonho aconteceu em 2021. Sem foguetório, a chef voltou à terra do avô materno — o avô Lamelas — e em Porto Covo viu um lugar perfeito para voltar aos fogões. Já não para cozinhar pratos como se fossem quadros minuciosos; já não para atender a guias de pneus e rankings de alta cozinha. Mas para recuperar a memória familiar e praticar um receituário livre, bistrô marítimo com inspiração alentejana.
Olhando para a carta, percebe-se logo isso. Há várias entradas frias, pequenos pratinhos a 5 e 6€ cada um: saladas de polvo e ovas, gaspacho, patê de fígado de abrótea, almece com abrótea curada, carapauzinhos de escabeche (em falta, nesse dia) e lulas fritas com maionese de limão e curcuma. Acresce um cesto de pão alentejano (4€), que pode vir acompanhado de um pratinho de torresmo de toucinho (1€) e manteiga da fritura do mesmo, com pimentão (1€).
Os principais dividem-se entre os pratos “da Costa” e os “do Campo”, com prevalência dos primeiros: abrótea com amêijoas e molho verde (19€); choco salteado com batatas e azeite de poejo (21€); açorda alentejana com linguado frito e ovo escalfado (21€); peixe porco à alentejana (23€); arroz cremoso de marisco e peixe do dia (31€); ovos fritos com carabineiros, ao estilo da chef Isidora Beotas (32€). No Campo, estava em falta o arroz de coelho (22€), mas havia outra opção regional, as migas de chouriço com entrecosto (24€).
Numa visita recente, provaram-se todas as entradas, destacando-se o almece (um subproduto do queijo, uma espécie de requeijão no seu soro de leite), que vinha com lascas de abrótea curada na casa — bela e inusitada combinação. Muito saboroso também o gaspacho (outra vez com abrótea, desnecessária),, bem como as lulas fritas num polme leve.
Sobrou pouco espaço no estômago para os principais. A escolha acabou por recair no arroz cremoso de marisco, que daria facilmente para duas pessoas. Bem descrito o prato. Quem fosse à espera de um arroz de marisco clássico, caldoso, à portuguesa, seria surpreendido. O que Ana Moura faz é, antes, algo mais próximo do risoto, sem queijo mas com muita manteiga, onde, segundo me disse, foram incorporadas cabeças de camarão. Peixes de mar (robalo e peixe-galo) cozinhados à parte, camarões salteados no ponto, de boa textura e sabor.
Nas sobremesas, provou-se a tarte de queijo com um crumble de pistáchio e ananás (6,5€). E a bomba, cortesia da casa: migas doces com nozes, servidas com medronho e mel, da marca Zorra.
Três notas, por fim. Sobre o espaço: estamos no modo bistrô, informal mas cuidado, quer na arquitectura de interiores, com a cozinha aberta para a sala principal, quer na louça e nos copos. Sobre o serviço, revelou-se atento e competente. Sobre os vinhos: a carta tem opções interessantes e fora da caixa, e investe nos produtores da zona, com um descritivo detalhado de cada produtor; só é pena haver pouca oferta de vinhos a copo, algo que Ana Moura explicou poder ser colmatado com uma conversa informal com a sommelier de serviço.
Quanto aos preços, são altinhos mesmo tendo em conta a qualidade do produto, em linha com a inflação praticada em estâncias balneares ocupadas por estrangeiros.
De referir que Ana Moura reconheceu-me, logo à entrada, contrariando a regra, aqui seguida, de as visitas do crítico serem anónimas. Em todo o caso, isso não pareceu implicar com a avaliação da casa.
Porto Covo já tem um bistrô como deve ser. Ana Moura já tem a sua Toscânia.
Rua Cândido da Silva, 55A, Porto Covo. 92 406 0426. Email: lamelasrestaurante@gmail.com. Encerra à segunda-feira.
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
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