Quando viveu em Itália, Tiago Serrenho, engenheiro ambiental, apaixonou-se pelo pesto artesanal. A devoção ao molho genovês levou-o a aprimorar a técnica e a participar na maior competição internacional da modalidade.
Costumo dizer, como piada, que sou o 11º melhor do mundo a fazer pesto genovês. Sempre avesso aos vegetais, mimado pelas avós que arranjavam o prato e tiravam as coisas verdes para o lado, acabei especialista neste molho verde cru, extraído a frio e feito de sabores perfeitamente equilibrados.
A minha descoberta do pesto, nome que vem do verbo “pestare” e que significa literalmente pisar ou esmagar, nasce numa ida à Ligúria, o berço do pesto, uns meses depois de me mudar para Itália.
Numa insuspeita tasca, vi sair um prato de minestrone alla genovese — ou sopa de entulho com pesto por cima. E um outro prato de confirmação: trofie al pesto — a mais interessante e tradicional pasta para comer pesto à genovesa, com batata cozida e feijão verde, para confundir os incautos e arredondar o repasto. Percebi rapidamente que aquilo era outra fruta, a anos-luz do pesto dos frascos das prateleiras de supermercado ou das sandes de mozarela da bomba de gasolina.
Pensa-se que o pesto terá nascido no tempo dos romanos, como uma pasta de alho aromatizada com manjericão, para temperar peixe e carne. Com o aparecimento da massa na dieta mediterrânea, a receita foi sendo enriquecida com outros ingredientes, como o queijo parmesão, o azeite e os pinhões. Ingredientes locais ou de fácil acesso.
Como em toda a culinária, mas na italiana em particular, é tudo uma questão de equilíbrio. O pesto tem de conter alho mas não demasiado. Tem de saber, claro, a basílico (manjericão) na conta certa, não podendo este ser abafado pelo parmesão, que por sua vez deve trabalhar em sintonia com o primo da Sardenha: o pecorino sardo, mais curado e salgado.
A cremosidade do pinhão deve estar lá também, mesmo que não seja evidente, e o azeite nem muito nem pouco, acidez nos mínimos. O sal serve para afinar e ajudar no esmagamento do basilico.
É este equilíbrio que o júri procura avaliar a cada dois anos, no Campeonato do Mundo de Pesto Genovês em Almofariz. E foi graças a este campeonato que me deixei cair pelo buraco do coelho da Alice à procura da receita perfeita de pesto.
Soube da existência do campeonato por acaso. Ao descobrir que além dos 50 lugares para os locais ligures e 25 para o resto de Itália, havia ainda 25 lugares para estrangeiros resolvi concorrer. Fui aceite e assumi como missão apresentar o melhor pesto jamais feito por um português.
Em Itália, há uma obsessão pela manutenção da autenticidade das receitas e dos costumes culinários. Dá-se uma atenção especial ao ingrediente certo, proveniente do local exacto, no tempo certo. Não se bebe cappuccino depois das 11.00, a mozzarella fresca não se conserva no frigorífico e o pesto genovês leva sete ingredientes, nem mais nem menos. Sete ingredientes, sete. O número perfeito.
O pesto é o pesto genovês. Todos os outros também o são, mas em rigor o pesto genovês é o que interessa, o que leva a pensar em pesto quando se fala em pesto.
Existe o pesto siciliano com pistacchio, mais granulado. Ou o pesto vermelho, também da Sicília, com tomate seco. Ou ainda pestos feitos com urtigas ou nozes. Chamam-lhes pesto mas não o são. A técnica pode ser a mesma, mas a essência não o é.
O campeonato pretende defender e divulgar a autenticidade da receita original.
A promoção da ligação do pesto com a região e a cidade de Génova, por motivos de orgulho identitário e de defesa do território, são os principais motivos da organização para divulgar a sua matéria-prima e o terreno onde esta cresce.
Se se perguntar a um genovês, o manjericão tem de ser da zona de Pra e deve ser DOP (Denominação de Origem Protegida), o alho de Vessalico DOP e o azeite Riviera Ligure ( DOP também). Tudo ingredientes colhidos nas colinas verdejantes beijadas pelo sol e pulverizadas pelo sal do mar Mediterrâneo. E, claro, feito em almofariz de mármore branco de Carrara com pilão de madeira de oliveira.
Até me ter inscrito nunca tinha tentado sequer fazer pesto. Preparei-me do único modo que sabia. Usando o método científico, criei um protocolo experimental baseado nas receitas que fui estudando.
Depois, fui aprimorando as quantidades. Uma colher de sopa de parmigiano acabado de ralar equivale a um peso diferente se o queijo já tiver sido ralado há mais tempo e perdeu o ar e a leveza. A quantidade de manjericão suficiente para encher o almofariz foi sendo ajustada com as quantidades necessárias de parmesão e pecorino sardo.
Os amigos serviram de cobaias nos jantares de sexta-feira à noite. Procurava sempre servir-lhes a pasta al pesto feita com basilico genovês, colhido e comercializado em pequenos bouquets ainda com a terra agarrada, que encomendava à frutaria de confiança vindo directamente da Ligúria, a 200km de distância. Tudo pela autenticidade e controlo das variáveis.
O basílico genovês distingue-se pelas folhas pequenas, ovais e convexas, e pela cor verde ténue. O seu perfume é delicado e privado da fragrância de menta, característica de outras espécies de basílico. O basílico quer-se jovem e primaveril e colhido antes das primeiras flores aparecerem.
Testando as hipóteses, experimentei com diferentes tipos de parmesão. Dizem os livros, que o parmesão deve ter pelo menos 36 meses de cura para que mantenha a sua integridade quando aquecido com a pasta.
Quanto ao pecorino sardo era a maior incógnita. Cheguei à fórmula de duas partes de pecorino para três de parmigiano como sendo a ideal. O azeite sempre Riviera Ligure DOP, engarrafado em pequenas garrafas embrulhadas em papel dourado que minimiza a oxidação.
Após a análise da satisfação (e insatisfação) dos clientes, o protocolo era revisto até nova iteração da receita, durante a semana, aproveitando o resto do basilico, tentando fintar o maior inimigo do pesto – o processo de oxidação.
Um dos maiores aliados do pesto é também um dos seus vilões. Os polifenóis, constantes no basilico, por um lado, dão características antioxidantes e anti-inflamatórias; por outro, o esmagamento do basílico acelera a oxidação, devido à enzima polifenol oxidase, o que torna o pesto escuro. Por isso, é preciso trabalhar rápida e decisivamente até à introdução do azeite, que acaba por criar uma ligeira barreira de contacto ao ar, retardando o processo de oxidação.
A técnica depende do cozinheiro ou pestaiolo. Há quem esmague e depois inicie movimentos rotativos e há quem apenas use a rotação e a pressão do pilão contra as paredes do almofariz para chegar a uma solução homogénea. O que se pretende é extrair um verde quase fluorescente.
Aliado ao seu sabor, o pesto toca uma série de virtudes nutricionais que o tornam um primeiro prato capaz de satisfazer vegetarianos e esfomeados por hidratos de carbono. E é por isso que o uso do almofariz, em vez do recurso a máquinas, ganha vantagem.
O outro elemento facilitador da oxidação e consequente perda de propriedades é a temperatura: a pedra fria de mármore do almofariz tem vantagem em relação aos processadores de comida.
O calor do motor eléctrico e a energia cinética das lâminas, transformada em energia térmica, acelera o processo de oxidação do pesto tornando-o escuro e desprovido de algumas das suas melhores características.
Há quem até chegue a meter as lâminas por alguns instantes no congelador para que a temperatura do processo seja menor. Nas cerimónias introdutórias do campeonato diz-se, no entanto, que ninguém é contra o uso dos processadores. Afinal, o importante é fazer pesto. Só que há um método melhor para fazer as coisas. E, para mim, esse método é à força de braço.
O campeonato desenvolve-se a cada dois anos, durante um sábado primaveril em que se celebra a cultura local, envolvendo toda a comunidade. Há vários eventos. As escolas organizam a competição juvenil, ao início da manhã. E não falta a Pesto Party a encerrar o certame, aberta à cidade.
Roberto Panizza, o mentor do campeonato, costuma dizer anedoticamente que, no primeiro campeonato, tiveram dificuldade em encontrar 100 concorrentes para participar. Os almofarizes familiares, que outrora alimentaram gerações ligures, tinham sido convertidos em vasos de plantas.
Panizza, um simpático gigante genovês, fundou o campeonato do mundo em 2007, com o objectivo de devolver dignidade a este ingrediente local. Sendo o segundo molho mais vendido no mundo (só ultrapassado pelo molho de tomate), candidato a património imaterial da Humanidade da Unesco, é, na maior parte das vezes, maltratado pela indústria alimentar.
É uma máquina bem montada, a do campeonato. Entre a carolice e a institucionalidade. A organização, em tempos pré-Covid, desdobrava-se em acções de promoção, inclusive deslocando as eliminatórias para capitais europeias, dando assim maior visibilidade e angariando novos concorrentes.
Há prémios para o pestaiolo mais novo e mais velho e para quem veio de mais longe. No ano da minha participação, alguém que veio de Hong Kong levou esse galardão.
O júri, composto por notáveis da região, amigos de Panizza e ex-vencedores, chega para as apresentações e para controlar o concurso.
3-2-1, Via al Pesto!
Quando se entra no salão nobre do palácio ducal de Génova, sente-se o perfume inebriante dos bouquets de basílico. Os 100 concorrentes, divididos em séries de 10, alinham-se de avental verde-pesto, com os almofarizes e os sete ingredientes à frente.
O “3-2-1, Via al Pesto!” é dado e começam a contar os 20 minutos de prova. Os primeiros de cada série passam à final de 10, que decorrerá durante a tarde. O ambiente é convivial e de festa, mas assim que começa, por momentos, apenas se ouve a madeira a bater furiosamente nas paredes do almofariz de mármore.
Os concorrentes têm as origens mais diversas. Na minha série, defronto vários locais genoveses e ligures, um chef francês que ganhou a eliminatória parisiense e Dona Mônica, uma senhora brasileira, nora de Alfonsina, de 90 anos, vencedora em 2014 e possuidora de um almofariz monumental, que se diz ter feito pesto para Giuseppe Garibaldi, o famoso general responsável pela unificação de Itália.
Não há uma receita única, nem dois pestos iguais. A ordem e quantidade ficam ao critério do pestaiolo. Apesar de ter começado a desenvolver a receita perfeita medindo quantidades, ganhei, entretanto, confiança e aprendi a interpretar os ingredientes de acordo com o momento.
Durante o campeonato, ao espreitar o competidor do lado, percebi que o meu pesto estava a ficar com a cor e consistência certas. Esmagava, adicionava mais basílico, voltava a esmagar. Eis então que entrou o parmigiano e a seguir o pecorino. Misturei, provei e… estava demasiado salgado: o pecorino do campeonato era muito mais salgado do que os queijos com tinha treinado.
Nessa altura, já pouco há a fazer. A cor e a consistência estão lá, mas o pecorino sobrepõe-se ligeiramente no perfil de sabor do pesto. O tempo acaba, os concorrentes saem e o salão fica vazio, para as provas.
Quando regressamos, depois do almoço (surpresa: pasta al pesto), os resultados. A Dona Mónica fica em primeiro na série e passa à final. Reparo que o meu almofariz fora bem provado pelo júri e fico com o consolo de que, pelo menos, devia estar bom. Deve ter sido uma decisão difícil.
Soube mais tarde que tinha ficado em segundo na série, à porta dos dez finalistas. Por isso digo: sou o melhor 11º pestaio do mundo (exaequo). E tivesse eu provado o pecorino antes.
No final, trocaram-se receitas de aplicação do pesto e debateu-se com que vinhos deve ser servido (brancos secos com alguma mineralidade vão muito bem), se vai melhor com pasta longa ou curta (há dois tipos ideais: as já supra-citadas trofie, um tipo de pasta fresca, longitudinal de três a quatro centímetros enroladas à mão; ou as trenette, um tipo de pasta longa e achatada semelhante às linguine).
Como última instância, para servir (mesmo com pesto de frasco), deve-se dissolver o pesto num pouco de água da cozedura da pasta, envolvendo-a depois de escorrida (mas não seca) no molho para conseguir um efeito cremoso e homogéneo, graças ao amido presente na água da cozedura.
Este ano, lá estarei de novo. Espero ganhar um lugar na final. Ou, simplesmente, ter uma desculpa para comer pasta al pesto durante semanas a fio. Desta vez, sem me esquecer de provar o maldito pecorino.
Tiago Serrenho
Engenheiro do Ambiente
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