“O Masterchef ajudou a que as pessoas se deslocassem até Bragança”

A experimentar

Entrevista a Óscar Geadas

O chef que trouxe a pronúncia de Trás-os-Montes para o programa Masterchef está de regresso ao seu restaurante, o G Pousada, em Bragança. Foi desde lá que falou com o Eggas, entre experiências de pratos para entrar no novo menu e a recuperação da Covid. A estrear na nova carta estará um capão em pote de ferro, mas a ideia é a mesma de sempre: dar ênfase à excelência do produto transmontano. 


Dizem que os chefs quando começam a aparecer na televisão, deixam de aparecer na cozinha. Foi assim consigo?

Não. Eu sou cozinheiro. Tive a felicidade de poder participar no concurso Masterchef, do qual me orgulho muito. Participei com dois grandes cozinheiros portugueses, o Vítor Sobral e a Marlene Vieira. Mas a cozinha é o meu habitat natural, continuo a estar na cozinha, aliás, cada vez mais. 

Conseguiu conciliar as duas coisas, portanto.

Sim, sim, perfeitamente. As gravações foram em Lisboa, estive a morar dois meses e meio em Lisboa, só vinha aos fins-de-semana a Bragança. Mas eu digo muitas vezes: o mérito não é nosso, é da nossa equipa. Ao nosso lado, há sempre pessoas que nos ajudam a atingir os objectivos. E os objectivos não são individuais, são comuns. E eu, felizmente, tenho isso e tenho um grande pilar, que é o meu irmão [o chefe de sala e sommelier do G Pousada, António Geadas]. E depois tenho uma excelente equipa, que desempenhou o papel muito bem, na minha ausência. 

O restaurante esteve sempre aberto?

Sempre. Nós fechamos para férias em Janeiro, a partir deste ano. Em Fevereiro, Março e Abril estamos fechados aos domingos e segundas. De Maio até Setembro estamos abertos todos os dias. E em Outubro voltamos a fechar aos domingos e segundas. 

Vocês percebem logo no início do Masterchef quem vão ser os finalistas? 

Não, de todo. Conforme se vão desenrolando as provas, os concorrentes têm formação, nós próprios damos algumas formações, e vamos vendo quem tem mais aptidão. Mas sabe que eu acho que o confinamento trouxe muitas coisas más, mas também trouxe coisas boas. Neste Masterchef, vimos que os cozinheiros amadores aguçaram o engenho, aperfeiçoaram-se. De dia para dia, nós notámos essa evolução: na confecção, no empratamento, na forma de estar. 

Acha que vai sair dali alguém que vá marcar a cozinha portuguesa, ter um restaurante com notoriedade? 

Acho. Aliás, temos dois ou três concorrentes que já tinham participado, como o Luís Portugal, cá de Bragança, que abriu o seu espaço, a Tasca do Zé Tuga. Há uma participante que creio ter um programa no canal 24 Kitchen. Em Setúbal, há uma concorrente que abriu um restaurante. Portanto, há algumas pessoas a quem o Masterchef mudou a vida e permitiu terem a sua própria empresa ou trabalharem para outros. 

O que é que Masterchef lhe traz, a si?

Falo no meu caso em concreto. Estou em Bragança, não é propriamente um local onde os gastrónomos e os jornalistas da especialidade se desloquem com facilidade. O Masterchef ajudou a que as pessoas se deslocassem até Bragança e descobrissem o trabalho que nós estamos a fazer. Já tinha acontecido quando ganhámos a estrela Michelin e, agora, para o mercado interno, voltou a acontecer com o Masterchef. É um programa líder de audiências mundial, em Portugal não está à frente mas ajudou a dar-nos a conhecer. 

As pessoas abordam-no mais na rua?

Não sei. Nós devemos ter a noção de que a televisão é uma coisa efémera. Eu tenho os pés bem assentes na terra. Não podemos deixar que as coisas nos subam à cabeça. Fiz esta série do Masterchef, não sei se vai haver outra, ou se vou ser convidado. Tenho que continuar a ser o mesmo cozinheiro e o mesmo ser humano, manter-me fiel aos mesmos ideais e princípios. 

A popularidade que tem hoje fez aumentar as visitas ao G Pousada?

O Masterchef começou em Novembro, estivemos fechados em Janeiro, mas posso dizer que sim. Aliás, em Dezembro tivemos das coisas mais bonitas que podem acontecer. Um casal veio passar um fim-de-semana a Bragança com os filhos e não lhes disseram onde vinham. Os filhos eram fãs do Masterchef. Então, quando vejo dois miúdos de 14 e 15 anos a comerem o menu de degustação e a dizerem aos pais que foi a melhor prenda que os pais lhe deram, isso deixa-nos de coração cheio e faz-nos continuar a acreditar que, o que estamos a fazer, fazemos bem. 

As nossas escolas de hotelaria estão a par do que se faz lá fora, nomeadamente em Espanha? 

Acho que sim. Temos boas escolas de hotelaria. 

Temos alguma coisa que se aproxime ao Basque Culinary Center, em Espanha, por exemplo?

São coisas diferentes. O Basque Culinary Center não é uma escola de hotelaria, apenas. Nós começamos a ter cursos superiores nesta área, mas os espanhóis já levam alguns anos nisso. Estamos agora a apanhar o comboio e creio que, dentro em breve, estaremos ao mesmo nível deles. Se olharmos para a nossa gastronomia, para a restauração, estamos uns anos atrás. Mas dentro de dois, três anos, não duvido que estaremos ao nível deles. Nós somos um diamante que está agora a começar a ser trabalhado.

No G Pousada há mais clientes espanhóis ou portugueses? 

Depende das alturas. Nós trabalhamos muito com turismo. O mercado local infelizmente é residual, daí nós termos aberto outro espaço, que é o Contradição, a preços mais acessíveis e com outro tipo de produto para cativar o cliente de Bragança. Em termos do G Pousada, temos muito cliente espanhol, belga, francês, inglês, porque nós estamos na rota de entrada em Portugal, não só do turista ocasional, mas do que tem segunda habitação aqui. Nós somos a porta de entrada, eles ficam na pousada e depois vêm ao nosso restaurante.

Imagino que não seja, mesmo assim, fácil para um restaurante como o G Pousada sobreviver em Bragança. 

Sim, é difícil por tudo. Por falta de mão-de-obra qualificada, de massa crítica. Não é difícil pelo produto. A Terra Fria Transmontana e a Terra Quente Transmontana permitem-nos trabalhar com uma série de produtos excelentes em todas as estações do ano. A nossa região é uma das regiões portuguesas com mais raças autóctones, do porco bísaro à vaca mirandesa, à churra galega. Em termos de queijos, temos também três ou quatro excelentes. 

Fotografia: Facebook G Restaurante

Quais são? Tenho ideia de que não é fácil arranjar bom queijo transmontano. 

O Terrincho é fantástico. O de cabra serrana, óptimo. E já começa a aparecer um ou outro queijo de mistura, que penso que dentro de pouco tempo dará cartas. Mas os dois primeiros não nos deixam ficar mal em nenhuma parte do mundo. 

Falou há pouco de carnes. Quais as virtudes do porco bísaro?

É um porco suis generis. É um cruzamento do porco galego com o porco de raça alentejana. E tem uma gordura intrínseca que permite fazer, juntamente com o nosso clima, os nossos excelentes enchidos. Não nos esqueçamos que em Vinhais temos uma das feiras de fumeiro mais antigas do país. O bísaro permite ter um presunto que se assemelha um pouco ao dos espanhóis, por ser muito marmoreado, com uma gordura adocicada, também devido à sua alimentação, com castanha e tubérculos. Mas nós em matéria de presunto ainda temos a aprender com nuestros hermanos

Com que peças trabalha de porco bísaro? 

Trabalho muito com cachaço e com presa, que é o lombo ao fundo do cachaço. Aquela gordura do cachaço, com o lombo, com o músculo, é muito interessante. 

E nos bovinos, a mirandesa é a sua raça favorita? 

É, é. Portugal tem 16 raças certificadas de bovinos, creio, todas diferentes mas todas boas. O grande problema é a falta de produto para abastecer o mercado. 

Mas ainda dá para os espanhóis virem cá buscar essa carne.

Sim, e não só os espanhóis. O mercado da saudade consome muita carne mirandesa, sobretudo em França, por causa dos nossos emigrantes. O outro problema é que, como há muita procura, muitas vezes não deixam formar o animal como deve ser. Eu, pessoalmente, não gosto de cozinhar com carnes de leite, gosto de trabalhar com carnes feitas. 

Mas os transmontanos costumam preferir vitela. Porquê?

Talvez tenha a ver com razões históricas. Mas falo por mim. Prefiro carne de vaca ou boi, porque a vitela é uma carne que não tem tanto sabor, é mais tenra mas também se desfaz mais e é mais aguada, não é tão estruturada. Se comermos carne de vaca ou boi, tem mais sabor a carne. 

O problema é que nem toda a gente sabe trabalhar carne de animais mais velhos. 

Sim, é preciso maturá-la, para ficar suculenta e macia. Em Portugal, temos o Sérgio das Carnes Jacinto, que trabalha a carne como ninguém e bate o país de Norte a Sul à procura de animais. Outro grande problema que temos em Portugal é que os nossos matadouros não fazem o rigor mortis como deve ser. Se formos a Espanha, eles abatem um animal e só depois de uma semana o animal sai do matadouro. Aqui, passados dois dias está cá fora. A carne não tem tempo de ter o descanso necessário. A carne depois de morta tem de ter sangramento e repouso.

Que outros produtos transmontanos elegeria?

Os cuscus. Não se fazem só em Trás-os-Montes, na Madeira também há. Mas é um produto único e versátil, que pode ser trabalhado com carnes e mariscos, com doces e salgados. É um produto único, que se faz aqui e que uma pessoa diz assim: como é que farinha, água e sal dão isto? Também gosto muito dos milhos, típicos da zona de Mirandela. 

São uma espécie de xerém grosseiro, certo?

Sim, mas o tipo de moagem é diferente. E depois adoro a nossa batata. Comer uma batata transmontana é outra coisa. Não tem nada a ver. 

É fã da batata kennebec, suponho?

Sim, foi a batata que toda a vida se produziu aqui, em Trás-os-Montes. Porque foi a que melhor se adaptou ao nosso clima. O nome vem de Quebeque, no Canadá, de onde é originária. Gosto muito porque nos permite trabalhar em purés, em batata cozida, tem um sabor muito diferente. 

Já comi aí kennebec frita e também estava óptima, mais leve, embora se diga que não serve para fritar.

Sabe porquê? Quando se pensa em comercializar pensa-se em grandes produções. E para ter grandes produções, o que se faz? Rega-se. Ora, nós se tivermos uma batata de sequeiro é óbvio que temos produções inferiores, mas em termos de qualidade é muito melhor. E permite-nos ter menos água e menos amido, o que faz uma batata frita espectacular. Deixe-me aqui lembrar o Vítor Adão, chef de Trás-os-Montes, que muito tem feito pela nossa batata e pela nossa gastronomia, com o projecto das Tabernas do Alto Tâmega, dinamizadas também pela Teresa Vivas. Damos pouca atenção à batata, mas pode ser excelente, se olharmos para a sua qualidade. 

E quanto à couve? 

Temos a tronchuda, certificada, ali de uma aldeia de Mirandela. Aquilo no Natal é uma coisa… de um momento para o outro esgota. Tem a ver com as amplitudes térmicas, isso faz com que o produto seja diferenciado. Deixe-me recordar que temos um dos maiores hortos do país, o Vale da Vilariça, com um micro-clima fantástico. 

Falando em DOP, concorda que há DOP que não prestigiam muito o produto? Estou a lembrar-me de muita alheira de Mirandela, por exemplo. 

Abstenho-me de comentar, não quero criar guerras regionais. Mirandela é a capital da alheira, infelizmente há uns anos aconteceu um problema de botulismo, e a indústria sofreu. Enfim, a alheira de Mirandela é boa. Se nós falarmos do salpicão de Vinhais, também temos bom e mau. Agora, eu pessoalmente prefiro as alheiras de Vinhais. Acontece que as autarquias licenciaram cozinhas regionais que podem laborar durante determinados meses. E depois temos o produto industrial que, como sabemos, é feito em massa. Em minha casa, dou prevalência ao produto de cozinhas regionais. 

E em termos de fruta, quais elegeria?

A maçã de Carrazeda de Ansiães, que é excelente. Estão também a produzir bravo esmolfe e pêra rocha. E, é óbvio, a castanha, o ouro negro de Trás-os-Montes. E o morango de São Pedro Velho, que só tem o problema da durabilidade: depois de colhido, dura pouco, começa logo a ficar mole. E a cereja da Alfândega da Fé, muito versátil: pode ser consumida em fresco ou em compotas e caldas, no Inverno. 

Muito bem, voltando agora ao princípio de tudo. Com que idade começou a cozinhar?

Venho de uma família de restauradores. Os meus pais sempre tiveram um restaurante e ainda têm [o Geadas, também em Bragança]. Cozinho desde pequeno. Um dos primeiros pratos foram umas moelas, na aldeia, que levei para o campo, para os meus avós, que andavam ao feno. Só que a restauração há 30 anos não era o que é hoje. Eu comecei a ajudar os meus pais, a servir às mesas e a tirar cafés, e lidei mal com isso. Quando os meus colegas estavam a brincar eu estava a trabalhar. Então, quando finalizei o 12º ano, o meu pai perguntou-me: “Queres ir para a escola de hotelaria?” E eu pensei: tudo menos isso. Fui tirar Engenharia do Ambiente, para a UTAD, e depois transferi-me para o Politécnico de Bragança. Mas andava a enganar-me. Chegou uma altura em que vi que o que gostava mesmo era de hotelaria. E foi aí que abdiquei do curso, estava já no terceiro ano. 

Esse curso foi útil, em todo o caso, para a cozinha? 

Sim, sim. Se fosse hoje, tinha terminado o curso. Tudo o que seja da parte de agronomia é importante para conhecer o produto. E engenharia do ambiente tinha isso. As bases da cozinha já as tinha aprendido em casa. 

E qual era a cozinha que tinha em casa? 

Era a cozinha regional de Trás-os-Montes. Saber grelhar uma boa carne. Saber fazer uma boa feijoada. Trabalhar com tudo o que é produto transmontano. 

Desse receituário dos seus pais, quais são os pratos que acha mais valiosos ou de que gosta mais? 

Todos eles. Aliás, eu adapto muitas receitas que a minha mãe faz no Geadas. 

Por exemplo?

Os cuscus de pombo da minha mãe. Eu uso a base que ela faz para fazer o pombo do G Pousada. Ela faz um estufadinho, com todas as partes do peito. Eu disse-lhe: é melhor cozinhar o peito de outra forma para não secar tanto, para ter mais suculência. A técnica faz com que passemos de um prato bom para um prato óptimo. 

E outros pratos do Geadas de que gosta?

O butelo com as casulas: outro prato daqui, feito com um enchido tido como pobre e hoje está em mesas nobres. A minha mãe faz de forma tradicional e eu desconstruí-o: faço um creme de cascas, o feijão verde seco, e o butelo, em vez de o servir dentro da tripa, desosso-o e depois faço o torchon e apresento-o grelhado. 

Que outras receitas da região acrescentaria? 

Coelho à bruxa de Valpaços. É estufado, com enchidos. Mas apresento-o desossado, recheado com a base de enchidos depois de cozido em sous vide, acompanhado com um estufadinho de batata pequena, uma espécie de risoto de batata. Já tivemos este prato na nossa carta. E gosto de tudo o que é caça, como a perdiz ou a lebre, um prato de caça que pode ser feito de diferentes formas: estufada, grelhada em arroz ou feijoada. E um peixe de que sou amante, mas cada vez há menos: a truta de rio. Ainda temos rios virgem, mas já não temos muita truta. Os nossos rios têm águas geladas, óptimas, mas a truta está a desaparecer.

Perante o que me diz, faz sentido o G Pousada continuar a ter carabineiro na carta?

Faz, sim. Estou a 100 km da costa, mas vendo mais peixe e marisco do que carne. Faz sentido porque em todos os pratos de peixe coloco um elemento de terra, de ligação à minha região. O carabineiro é acompanhado de batata daqui e cogumelos de temporada, aqui há muito cogumelo. E acompanha sempre um véu de chouriço de cachaço. 

Portanto, o carabineiro não está lá para agradar aos inspectores da Michelin?

Não, está lá para agradar aos meus clientes. O carabineiro esteve sempre nas minhas cartas. É muito nobre e pode ser associado aos produtos locais. Só há outro prato que eu nunca mexo, que é a bola de Berlim com queijo Terrincho e presunto de porco bísaro. São dois pratos em que eu nunca mexo.

Ainda vai muitas vezes ao restaurante dos seus pais?

Todos os dias almoço lá. E, se for necessário, ajudo-os na sala que, na cozinha, manda a minha mãe.

Tem a tentação de lhe dar dicas? 

Não. Tenho mais a tentação de ouvir as dicas dela. Repare, nós agora, os chefs, andamos deslumbrados a trabalhar com o fogo. Ora, toda a vida se trabalhou com carvão. Aliás, aqui temos o melhor restaurante a fazer carnes grelhadas do país, que é o Abel, que faz a melhor posta mirandesa. Confesso que foi com a minha mãe que aprendi a trabalhar o carvão. Toda a vida ela trabalhou com fogo e carvão. Ainda há pessoas aqui a fazer o seu carvão: de esteva, de urze, de giesta. Mas se queremos, mesmo, aprender a trabalhar a grelha temos de ir ao Asador Etxebarri. Já lá fui duas ou três vezes, com os meus pais. Eles adoraram. No Etxebarri utilizam cada espécie de carvão para seu tipo de produto, seja carne, peixe, por causa da fumagem e do calor que dão. 

Está a trabalhar nalgum prato especial, de momento? Dê-nos um final delicioso para esta entrevista.

Sim, estou. Um galo capão, de Freamunde. Fazemos a guarnição toda num pote de ferro. Apresentamos o lombo, que é cozinhado em sous vide e depois vai ao carvão a marcar. Mas com tudo o resto — as coxas, as asas — fazemos um estufado que demora 24 horas a cozinhar, com o pote de ferro na brasa, para ficar mais suculento e tenro. Tiramos então a carne, fazemos o torchon, e aproveitamos os fígados e o coração para um molho, que finalizamos à frente do cliente.

Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista

 

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