Eu adoro contar histórias e tenho-o feito por aqui. Hoje vou contar uma que se passou pouco tempo depois de me ter mudado para Lisboa. Todas as outras se passaram no Porto, mas agora sendo um Alfacinha em todo o seu esplendor, quis também abraçar as oportunidades que a capital proporciona: não as profissionais, mas antes as dos jantares diferentes, com gente diferente, música diferente e, sobretudo, comida diferente.
Miguel Esteves Cardoso referia-se aos jantares nortenhos como uma experiência espiritual enquadrada num espírito profundamente familiar. Eu que vivi isso atesto-o. Contudo, o que o MEC não nos contou é que nos jantares sulistas – principalmente os de Lisboa – é como se ser atirado para um elenco e cenário de uma qualquer obra-prima do mestre Allen. Aquele trágico-cómico, patente na conversa, mas sobretudo cunhado na exuberância gastronómica.
Ainda há tempos, nesta mesma coluna, escrevi sobre a “Arte de dar Jantares” e, eis senão quando, em boa hora uma querida amiga – que me tem acolhido com primor na boémia lisboeta – convidou-me para um desses jantares que platonicamente costumo namorar. Com efeito, dei por mim a jantar em casa de um ministro.
Confesso, desde já, que senti algum nervoso miudinho. Admiro a pessoa em questão e, sendo um amante da trica política e partidária, antecipava um serão bafejado de conspiração: menos que golpe de estado, o jantar seria um fracasso. Contudo, e hoje com uma certa distância do acontecimento, dou graças ao facto de nada disso ter acontecido. Comeu-se bem, falou-se bem e bebeu-se bem, nada mais.
Não fui o único convidado. Aliás, ao que me consta – e com total aprovação – este costuma ser um anfitrião regular de soirées interessantes onde o facto de não conhecer os seus convidados é puramente irrelevante. Eu era um desses ilustres desconhecidos.
Creio que nesse jantar as quotas de géneros estavam cumpridas, mas a importante ressalva vai para a equivalência de interesses que não olhava propriamente às pessoas em particular. Contudo, era eu o mais novo e, naturalmente, não queria ou não pretendia ser eclipsado por uma mesa de pessoas que, apesar de não as conhecer, apontavam ter um universo de personalidades pujantes. Ainda assim, e mesmo que tenha bebido uma cerveja rápida na avenida de Roma para afastar algum nervosismo enquanto esperava a minha querida Diana, todas essas inquietações se mantiveram e só se viram dissipadas quando atacamos os víveres brilhantemente dispostos diante de nós pelo antigo ministro.
Ainda antes que eu pudesse introduzir um assunto ou que pudesse partilhar as minhas já previamente mastigadas reflexões sobre o período eleitoral que recentemente tinha passado, o ex-ministro colocou à disposição de todos os convivas um presunto bísaro (de Gimonde), previamente fatiado, delicadamente disposto num pratinho com aquele sentido estético que nem todos têm a sensibilidade de ter. A origem celta da carne, promovida num crescimento natural e absolutamente rural, com a salga harmoniosamente conjugada à fina textura de uma gordura intramuscular – que a torna macia e sumarenta –, permitiu-me libertar das minhas ansiedades originais. Aliás, levou-me de volta a Rebordões de Souto, casa do meu grande amigo Gonçalo, onde dez gandulos – amigos de vida – se juntavam em torno de um Pata Negra antes do jantar que celebrava o fim dos exames num determinado ano.
Estávamos ainda nas entradas, com alguma conversa de circunstância, e sentia-me já em casa. Contribuiu para isso também, apesar de considerar o presunto o ex-libris de todos esses momentos iniciais, o facto de termos sido granjeados com uma tosta de bolo da Madeira, doce (quiçá demais para mim), com um foie gras que também ele conseguiu evocar um certo déjà vu que, ao dia de hoje, ainda não compreendo.
Assim, este grande obreiro do país (o nosso ministro), foi também ele um grande obreiro daquele jantar em que reservou os seus tesouros gastronómicos para quando estivéssemos confortavelmente sentados à mesa.
O enquadramento era perfeito com as notas de Miles Davis a encherem a sala e a comporem uma bela banda sonora às minhas lembranças. Não sei se era porque aquela data era a da sua morte (não do desaparecimento como aquele jantar comprovou) ou se foi por mero destino e bom gosto musical – o presunto tinha-me libertado de alguma ansiedade, mas não o suficiente para despir a capa de timidez e partilhar essa coincidência histórica.
Antes da sopa, um creme de cogumelos com trompete negra – espécie muito feia de fungo, com um cano esguio e uma cavidade capaz de absorver mais luz que os buracos de Hawking, mas com uma textura muito fina, fibrosa o suficiente e um sabor explosivo proporcionalmente inverso à sua estética natural –, foi-nos servido aquilo que o burgo convenciona hodiernamente como uma bowl: camarões carnudos descascados, abacate às tiras com gomos de tangerina, polvilhado com manjericão que ressaltava a graça daquele “lava-paladar” tão importante para o que se seguia. Eu nunca fui fã de misturar fruta com a dita comida verdadeira, mas neste particular caso cedo e concedo que resulta – e bastante bem.
Já me considerava jantado. Aliás, após o creme, tudo o que se sucedeu foi só mais um prego na minha sentença divina e uma demonstração da fragilidade humana – na esteira de Bosch e do seu Jardim das Delícias Terrenas – quando diante de um dos pecados mortais: neste caso, o da gula. Ainda assim, afinal de contas sou bastante humano, não resisti quando foi disposto diante de mim uma costelinha de vaca, diretamente do Talho da Quintinha do Linho para a mesa. Tanta era a opulência que a ansiedade de fazer “boa-figura” foi substituída pela ansiedade de temer deixar algo no prato, não pela falta de vontade, mas antes por incapacidade física. Mas resisti, não fosse eu um estupendo garfo.
No entanto, o antigo ministro, anfitrião e mestre de cozinha e do jantar, não se poupou a esforços tirando esta minha pobre barriga da miséria, sendo que este jantar me permitiu fugir da frugalidade franciscana que assola todos os estudantes universitários quando saem pela primeira vez do ninho materno. E foi nesse contexto, no contexto que por alguma razão que não discirno se encarou as costelinhas como “entrada”, que nos foi servido a seguir um costelão wagyu com batatas do Sobral, assadas com salva e alecrim, e um misto de cogumelos boletus e amanitas – disse-me em surdina, da Funghifresh.
Corro o severo risco de parecer provinciano ao relatar estes acontecimentos. Creio que não o sou, mas confesso-me admirador de um sempre bom repasto pantagruélico. E, para um homem de papilas apuradas, mastigar aquela que é considerada como uma das melhores carnes do mundo, cuja proveniência vem de uma franzina e ossuda vaca, mas com um marmoreado de gordura tenra, como se fosse manteiga a percorrer aqueles vasos sanguíneos, de um bicho alimentado a cerveja e saqué e que ainda tem direito a massagens do seu criador – se isto é vida bicho, bicho quero ser. Não poderia mais que me deitar por terra, dar-me por vencido, porque aquele naco foi sem dúvida um dos melhores momentos da minha vida. Ao ministro, mais que as reformas de que lhe confidenciei ser adepto, agradeço-lhe o respeito que teve no destino da morte do bicho, trazido desse Talho das Manas em Torres Vedras, onde no prato se compreendem plenamente a mestria de quem o confeciona e de quem o produz.
Ao fim, derreado pelos sabores, pelo bom vinho (portugueses e italianos) com que se ia alternando, ainda houve espaço de resistência para um Porto acompanhado por um prato de queijos, que o anfitrião, bom português (ainda que profundamente cosmopolita), tinha trazido no dia, creio que anterior, de Estrasburgo.
A música, agora mais melancólica, pardacenta, naquele choro trompético que só nosso Miles seria capaz de produzir, alongava-se e acompanhava a digestão do último petisco: um bolo de pistachio com gelado de framboesa.
Foram depois fumados os últimos cigarros e entornados os últimos copos, já longe da mesa, na varanda onde se sentia uma brisa do mar e se discutia a perceção da finitude da vida humana – cliché, mas agradável. E eu, após boleia de uma das personagens do Annie Hall que ali estavam presentes, retornei a casa, diretamente para uma cama fria, mas profundamente consolado com o serão.
Essa foi a noite em que fui jantar a casa do Ministro. E quando lhe foi elogiado este esplendoroso jantar (e da sua excelência) o mesmo respondeu: “os produtores [da matéria-prima do jantar] que são todos pequenos (e merecem ser promovidos) são as verdadeiras estrelas da comida!”. Ora esta – e apesar de já ter havido várias – foi a cereja no topo do bolo: a possibilidade de testemunhar a abnegação dos grandes. Quanto a mim, continuo, ainda na pobreza franciscana mal enjeitada de estudante universitário, que subsiste graças a conservas, na esperança de que, com este ministro ou com outro, com estes produtos ou com outros, com estes produtores ou com outros, venha a ter a possibilidade de repetir um jantar com esta arte.
José Maria Couceiro da Costa
Estudante
Partilhe este texto: