Até há um ano, Joana Costa estava a dar serviços em restaurantes célebres de Lisboa, como o Fogo ou o Senhor Uva. Hoje está à frente da padaria Isco. Relato na primeira pessoa sobre o que muda quando se trocam os caldos pelas massas.
Sair de casa às três da manhã não era uma coisa que me visse a fazer. Caminhar na rua escura, sozinha. Chegar à padaria e ir logo ver se as leveduras trabalharam como deve ser. Começar as primeiras massas. Ver se os fornos estão quentes e prontos para receber a primeira leva.
Troquei a cozinha pela padaria há um ano e meio.
Às vezes, ainda batem as saudades da cozinha. De estar rodeada dos cheiros dos caldos a ferver, de ter a MEP (mise en place) pronta no frio, as bancadas organizadas e limpas, tudo preparado para dar serviço. Aquele momento antes da porta abrir, já com os lumes acesos. Aquela expectativa. Parecia que todos os dias eram o início de um jogo importante, uma final.
Também tenho saudades de cortar a carne no ponto; provar uma redução com tudo o que deve ter; ver os empratamentos de todos na roda; responder um “Sim, chef” confiante. Saudades de acabar as limpezas e, já de rastos, beber uma cerveja gelada. Sinto sobretudo falta disso, da camaradagem de quem faz 14 horas seguidas a um ritmo alucinante; de quem sabe o que é abdicar de quase tudo para ser cozinheiro.
Agora, há fatias de pão quente para o pequeno-almoço, todos os dias.
A principal diferença entre ser-se cozinheiro ou padeiro é o tempo. Nos restaurantes, o tempo não existe, ou existe a uma velocidade diferente. Num restaurante, podemos estar a escolher ervas durante dez horas. Ou dar serviço para setenta pessoas em meia hora. Ou ser uma da manhã e parecer que o início do dia foi há uma semana.
É estranho. Por vezes, só as pernas e as costas nos lembram do tempo num restaurante.
Na padaria, o tempo é muito certinho. O tempo de amassar, o tempo de cozer, o tempo de fermentar. Há uma cadência natural inalterável. E há um mistério.
É difícil explicar a sensação de tirar o primeiro pão que se põe no forno. Ou cortar uma massa que está fermentada e hidratada na perfeição. Ou pôr as mãos na farinha e vê-las dar o shape ao pão — sem pensarmos, sentindo só. Ou descarregar a massa no banneton e saber, desde logo, que amanhã a fornada vai ser incrível. Numa padaria, ao contrário do que acontece nos restaurantes, não se pode apressar as coisas. Aliás, quanto mais paciência se tiver, melhor.
Um luxo bom, poder ter tempo e paciência.
Não são dois mundos comparáveis, o pão e a cozinha, cada um tem a sua mística própria.
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