A Lição do Bolo do Caco

A experimentar

A actriz e comilona Diana Barnabé testou o pão madeirense feito na padaria Farro, no Porto. E acabou com uma história de vida.

Como tenho a mania que sei tudo, facilmente me ponho a jeito para engolir em seco a minha ignorância. 

Em Junho de 2020, saudosa da minha última viagem à Madeira, decidi provar o bolo do caco de uma nova padaria artesanal que havia brotado da pandemia. Com a simpatia de quem acabara de lançar um negócio, o padeiro escreveu-me a perguntar por notas da prova e sugestões de melhoria. 

Com a arrogância de turista que uma vez enfardou dezenas de bolos do caco ao redor da ilha e se acha especialista, disse-lhe que o bolo do caco, embora estivesse mal cozido e se assemelhasse pouco aos vários que já tinha provado, era bastante agradável e fazia brilharete junto da manteiga de alho e salsa. 

O padeiro, com a paciência treinada de quem lida com fermentados, explicou-me que o bolo do caco tradicional que tinha como referência era só farinha, água e fermento de padeiro, e que a receita que ele usava na sua padaria era a de fermentação natural, trazida de Santana, feita com batata doce. 

“Se estava mal cozido, fico a dever-lhe um bolo do caco”, acrescentou. 

Enchi-me de vergonha e, compulsivamente, comecei a abrir separadores do Google em busca de acalmar a minha ignorância. Estava diagnosticada a causa da doença: falta de referências fidedignas e excesso de produtos industriais. 

Qualquer porto-santense ou madeirense se arrepiaria com as versões de bolo do caco que se encontram pelo Continente e que acomodam todo o tipo de ingredientes em sanduíches por esses bares de praia fora. E isso só se configura num problema quando deixamos de reconhecer o verdadeiro bolo do caco tradicional, de distinguir os seus aromas e texturas. 

No Porto, o arrepio terminou em 2020. João Figueira Silva cresceu na Madeira, formou-se em cozinha no Estoril, trabalhou na Dinamarca, Brasil, Portugal, e trouxe da Herdade do Esporão a curiosidade pela fermentação e a vontade de aperfeiçoar as técnicas. A Farro Padaria, empresa que abriu com a arquiteta Luna Brandão, começou na cozinha de um 3º andar e tem agora o seu parque de diversões instalado num rés-do-chão rente ao jardim da Cordoaria.

Farro Padaria | Fotografia: Estúdio Cozinha

O apelo que sentiu pelo pão fê-lo mergulhar na sua história, e as suas raízes trouxeram à Farro os sabores Madeirenses. Como a manteiga de alho e salsa ou o brioche com aguardente e mel de cana.

Em dezembro de 2021, quando me sentei à mesa num jantar de Natal cuja lista de convidados devia ter estudado previamente, tinha à minha frente o João, padeiro da Farro, o tal a quem tinha dito, nos idos de 2020, qualquer coisa como “sim, é bom mas não é bolo do caco”.

O episódio de 2020 tinha-se esquivado da minha memória, mas o João, gentil como é, segurava um saco na minha direção. “Trouxe o que te devia. Espero que estejam bem cozidos.” A sua humildade já tinha sido um antídoto para a minha fatal mania de sabichona. A sua generosidade permitiu amenizar a minha vergonha — e confessar-lhe: “O problema não és tu, sou eu”. O problema eram as minhas referências. 

Contou-me tudo o que sabia, garantindo sempre que sabia muito pouco. “Um bolo do caco tradicional não leva fermento industrial, nem se faz num dia”. Das suas recordações fazem parte os verões que passava em Porto Santo com a Senhora Leocádia, que fazia bolos do caco de vários tamanhos. Quanto maior mais comunitário porque, tal como o original, era feito para repartir. 

Quando lhe perguntei sobre combinações preferidas, animou-se e começou a lista: “Filetes de peixe espada e pickle de banana verde, vegetais, línguas, bochechas e, claro, manteiga de alho e ervas. É impossível dissociar o pão da manteiga e o bolo do caco da manteiga de alho.” 

Os bolos que o João me ofereceu tiveram vida curta. Um foi derrubado simples, fazendo-me prestar atenção à textura e à cozedura, curiosa com este presente que herdámos de pessoas que, tal como o João, foram garantindo e aprimorando produtos simples e icónicos. O segundo foi barrado sem medo com manteiga de alho e salsa. O terceiro foi cama para umas sobras de rojões resgatadas do frigorífico. 

Farro Padaria | Fotografia: Estúdio Cozinha

Depois de pedir ao Google uma receita que pudesse fazer em casa, evitando as que diziam “receita fácil de bolo do caco em 35 minutos”, “fermento de padeiro” e “duas a três horas de fermentação”, percebi que a forma mais rápida de matar saudades por sabores que estão a milhas está bem perto da estação de São Bento.

É subir até aos Clérigos (há que fazer por merecer) e premiar-se com as inevitáveis imperfeições de um pão redondo e achatado que, para além da massa mãe, leva farinha moída em mós de pedra, água, sal, e mais de 50% de batata doce branca com casca cozida em água. É feito na chapa, cozido de um lado, do outro e depois nas laterais. Na Farro, aproveita-se o calor remanescente do forno que coze também pão e broa de milho de fermentação natural para, lentamente, garantir uma cozedura interior mantendo a humidade da batata doce.

Na baixa do Funchal, a demanda do público tem obrigado o bolo do caco convencional a transformar-se numa reprodução fast-food regional. Mas ainda há quem procure o equilíbrio e nos ofereça uma excelente versão, embora com fermento industrial, com respeito pela tradição. A Casinha do Bolo do Caco, empresa itinerante madeirense com marca registada, procura a experiência tradicional garantida pelo rasto dos pequenos pedaços de batata doce. 

O mundo passa por transformações, a possibilidade de expansão trazida pela industrialização deixa pelo caminho parte da história e o nosso paladar perde vocabulário e literacia. Passamos a reconhecer e a procurar o que temos como referência e mal conseguimos ver a beleza de um produto artesanal feito com tempo, pormenor e cuidado.

Talvez precisemos menos de bolos do caco espalhados pelas cartas dos nossos restaurantes e pelas prateleiras de pré-congelados e mais de padarias artesanais que tenham uma produção limitada. Come quem chega mais cedo, quem fica a guardar lugar ou quem encomenda primeiro.

 

Farro Padaria | Fotografia: Estúdio Cozinha

Caso contrário, que estamos nós a fazer para merecer o legado de quem dedica o tempo a aprimorar uma receita para fazer dela o seu ofício? Para fazer dela algo que possamos comer e agradecer. Ou, no meu caso, comer e calar (para evitar dizer asneiras). 

Farro Padaria
Rua São Bento da Vitória 80 R/C, Porto
Terça a Sábado 10h00 – 15h30 / 17h30 – 18h30
Recolhas e entregas à porta
966617195 / @farro.padaria


Diana Barnabé
Estúdio Cozinha

 

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