“O talento ou o acaso não escolhem, para manifestar-se, nem dias nem lugares.” José Saramago.
Mas afinal o que define um bom Chef de cozinha? A resposta para esta pergunta não é nada óbvia. Terá de ter estrelas Michelin? Garfos de ouro? O seu restaurante ter um lugar assegurado na lista dos 50 melhores melhores do mundo? Será obrigatório que trabalhe num local desenhado por um arquitecto da moda e com uma sala carregada de mobiliário art deco, toalhas de linho e talheres banhados a ouro? Caso estas questões relacionadas com localização, forma, reconhecimento e fama não sejam importantes, bastará que o Chef perceba os aromas, sabores e ingredientes apenas o suficiente para que os consiga misturar em harmonia?
Ou um grande Chef tem, forçosamente, de ir mais além que isso. Terá obrigatoriamente de promover uma experiência que vá além da simples mistura aritmética dos sabores, articulando também o ambiente em redor com a sua concepção gastronómica? Não será necessário que vá traduzindo igualmente a cultura e a linguagem culinária em algo que todos possam entender, numa história que faça sentido? Assim sendo, e do mesmo modo que algumas pessoas têm características físicas e temperamentais que as tornam bons cientistas, corredores de maratona ou pianistas, deve existir um conjunto de características que definam um bom Chef.
Esses Chefs têm de ser antes de tudo, bons cozinheiros, aqueles privilegiados que muitas vezes são descritos como possuidores de um ”talento alquimista”, de um “sexto sentido no olfacto”, ou de um ”toque mágico nos ingredientes”, algo especial, que eleva qualquer comida que eles preparem, sejam uns simples ovos mexidos ou uma trabalhosa lièvre à la royale, a uma experiência sublime. Será possível distinguir esses cozinheiros com toque de Midas de outros que são apenas esforçados? Nasceram já destinados ao estrelato ou será que isso é apenas uma questão de formação e dedicação? O que é exactamente esse ”factor X” na cozinha?
A resposta a todas essas perguntas foi solicitada, no ano em que nasci, 1983, pelo New York Times, aos 20 melhores Chefs, aos professores de culinária mais conhecedores e aos autores gastronómicos mais respeitados de então. Embora as respostas fossem tão variadas quanto um quadro de Picasso, surgiu um surpreendente consenso em torno de três características. Três qualidades de um cozinheiro excepcional que são comuns às de um equilibrista circense: paixão pelo trabalho, coragem para arriscar e um sentido de equilíbrio apuradíssimo. A estas três acrescenta-se uma outra, exclusiva de quem trabalha com comida: o amor e respeito pelos ingredientes.
As primeiras três até se podem aprender, esta última parece ser inata. É quase como um pianista. Podemos ensinar qualquer pessoa a tocar piano, mas só aqueles verdadeiramente especiais vão conseguir compor uma melodia. Existem inúmeras características que fazem passar esses excelentes cozinheiros à categoria de Chef. O título de “Chef” é uma honra que apenas é alcançada ao passar incontáveis horas a aprender e a aprimorar as habilidades culinárias, dia após dia, queimadela após queimadela. A principal característica que diferencia um Chef de um cozinheiro, é que um “apenas” cozinha, enquanto que outro concebe, lidera e reinventa. Voltando ao exemplo da musica, um pianista seria um cozinheiro enquanto que um maestro seria o Chef. Apesar de ambos perceberem de música, as funções de ambos são bem diferentes.
Assim sendo, para passar de um excelente cozinheiro para um excelente Chef é necessário mais um punhado de características: compromisso, liderança, intuição, capacidade para orientar os outros, atenção ao detalhe, trabalho multidisciplinar e paciência, muita paciência. Na minha opinião (e é apenas isso … a minha opinião) estas sete exigem que se passe uma boa parte do processo de formação com um Chef já em “velocidade cruzeiro” e sem a necessidade de provar nada a ninguém. Neste aspecto dou sempre o exemplo de Gordon Ramsay, que antes de ser quem é, trabalhou para Joël Robuchon, Guy Savoy e três anos para Marco Pierre White no Harvey’s em Londres.
Hoje falo-vos de um Chefe, que apesar de bastante novo, já deixou de ser “apenas” um excelente cozinheiro e caminha a passos largos na criação de uma identidade gastronómica que um dia o levará, certamente, na direcção do reconhecimento, fama e consolidação. Estou a falar de Nuno Matos, Chefe do restaurante Vila953, em Vila do Conde. Conheci o Nuno em Outubro de 2014, numa era pré blogue, num Rota das Estrelas, no restaurante Largo do Paço (na Casa da Calçada em Amarante). Essa passagem pelo Largo do Paço (numa altura em que este era uma das melhores “escolas” de Chefs do país) garantiu-lhe contacto com a estrela de Vítor Matos e com a estrela de André Silva (que aquando dessa estrela passava por uma das fases mais brilhantes da sua concepção gastronómica). Mais tarde acompanhou André Silva na sua viagem até ao Porta em Bragança.
Depois de uma das maiores injustiças que assisti ao nível gastronómico do nosso país, o projecto Porta encerra e o Nuno resolve usar algumas das características que definem um bom Chef, nomeadamente a coragem para arriscar, a intuição, o trabalho multidisciplinar, a paciência, e sejamos sinceros, uma pitada de loucura, para se lançar a solo num restaurante localizado num food court de um Shopping. Isso mesmo, leram bem, o Vila953 está localizado no Vila do Conde Porto Fashion Outlet.
Sabendo de toda a bagagem profissional que o Nuno já tinha, por ter sido o braço direito do André Silva e por “estranhar” o local onde agora exercia a sua profissão, confesso-vos que fiquei imediatamente interessado em visitar o espaço para vos poder contar a história que agora vos narro. Um dos pratos que lá encontrei, foi dos melhores que provei no ano passado e deixou-me sem palavras. Dele falaremos mais à frente.
As boas-vindas chegaram em forma de um Ceviche de salmão e folha de arroz, de uma Trufa de alheira e de um Tártaro de Vitela. Todos eles muito honestos, complementares e assentes em produtos de qualidade. A acidez de uns, a untuosidade de outros, as diferentes temperaturas e a diversidade de texturas contribuíram, em conjunto, para uma espécie de preâmbulo despertativo que teve o condão de atrair o interesse para o que se seguiria. O Tataki de atum com sementes de sésamo, microvegetais e molho Teriyaki com yuzo serviu como elemento de transição, entre as propostas anteriores, menos densas, com as seguintes, carregadas de sabor. Os vegetais acrescentavam alegria ao prato e introduziam uma certa adstrigência herbácea que combinava muito bem comas notas balsâmicas dos molhos e com a untuosidade aristocrata do atum. Simples mas directo, com sentido e eficaz, muito fixe!!!
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