“Portugal deve ter nascido com boca gulosa”

A experimentar

Entrevista a Virgílio Nogueiro Gomes

Em semana de festas, fomos pedir explicações ao gastrónomo e historiador da alimentação Virgílio Nogueiro Gomes, que lançou este ano o livro “À Portuguesa”. Apanhámo-lo no Brasil, onde costuma ir passar o Natal. Essa circunstância serviu de mote para uma entrevista onde se procurou fazer um regresso ao passado, traçando o percurso da cozinha portuguesa desde os tempos dos romanos até à actualidade, desde Goa até à Baía. Quais são as nossas raízes culinárias? Desde quando as encontramos inscritas nos livros? De onde vem o nosso gosto pelo açúcar? Doceiro confesso, Virgílio acha que pode haver uma genética para isso, mas lembra que foram os árabes quem deixou o bichinho. E defende: a solução não é tirar açúcar do receituário; a solução é comer menos quantidade.

Da pesquisa que fez sobre receituário “à portuguesa” em livros estrangeiros, é possível definir a imagem que o mundo tinha da cozinha portuguesa, antes do século XIX? 

Não. São receitas com a denominação “à portuguesa” para as quais procurei descobrir a razão daquela denominação. Poderá ser por contacto com portugueses que estiveram naquelas regiões, ou por aproximações regionais que tenham sido influenciadas por esses agentes. Há um caso especial que é o livro de 1611 de Francisco Martinez Montiño, cozinheiro chefe do rei Filipe III de Espanha, que o acompanhou quando esteve uma temporada em Lisboa. Apesar de apenas cinco receitas serem denominadas “à portuguesa”, há muitas outras que poderão ser encontradas no nosso inventário de cozinha. O primeiro livro de culinária publicado em Portugal, em 1680, de Domingos Rodrigues, tem algumas receitas inspiradas e outras quase transcritas desse livro, como é o caso da “Olla Podrida”, que só quase dois séculos depois vem a dar o nosso “cozido à portuguesa”. Curiosamente, vamos encontrar num manuscrito de 1705, de Francesco Gaudenzio, cozinheiro de cardeais em Roma, duas receitas que parecem transcritas de Montiño: “Para fazer o arroz à portuguesa” (arroz-doce) e “Para fazer a sopa à portuguesa dita à camponesa”. 

O elemento mais comum vamos encontrar na doçaria, com a laranja (doce), associada a Portugal.

Só a partir de 1902, com o “Le Guide Culinaire”, de Auguste Escoffier, passou a utilizar-se a denominação “à portuguesa” sempre que na preparação culinária se utilizava tomate. Mais evidente se encontra, do mesmo autor, “L’ Aide-Mémoire de la Cuisine”, cuja primeira edição é de 1919. Mas, antes, em 1914, publica-se também “Le Répertoire de la Cuisine”, de Théodore Gringoire e Louis Saulnier, com reflexo das receitas de Escoffier. De recordar que este “Répertoire” se publicou até 2009, sem alterações.

A imagem da cozinha mudou muito, desde então?

A imagem não era uma constante, mas sim receituário acidental que não criou uma imagem que tivesse perdurado. 

Mas há coisas que se mantêm, hoje? 

Voltemos ao Francisco Martinez Montiño. O seu livro parece um inventário da cozinha portuguesa no início do século XVII. Aliás, vamos encontrar no livro de Domingos Rodrigues algumas receitas que parecem transpostas de Montiño. Curiosamente, este livro é considerado o mais importante da cozinha espanhola, uma cozinha barroca. Apesar de ser um livro da corte, também encontramos um receituário simples e algumas receitas ainda hoje se confeccionam. É o único!

Que técnicas lhe parecem típicas da cozinha tradicional portuguesa? 

Fazer sopas não sei se é uma técnica, mas é uma constatação de prática corrente e ancestral. Possivelmente, a técnica mais importante será a que dá origem aos ensopados. Embora não sejam um exclusivo nosso, neste grupo temos as açordas e as sopas secas. A maioria dos ensopados são estufados, mas temos algumas formas de fazer que partem de guisados, quer dizer, de um estrugido ou refogado, o que significa que leva pão.

DR

É possível situar o nascimento do refogado, no tempo e no espaço? E a vinha d’alhos? 

É muito difícil, pois temos muita falta de registos. Se analisarmos receituário mais antigo de Espanha, França, Reino Unido e Itália, vamos encontrar algum receituário com refogados. Começando pelos mais antigos, que apesar de não referirem expressamente a técnica, ao ler a receita encontramos algo semelhante aos refogados: “Les Délices de la Table et les Meilleurs Genres de Mets”, de Ibn Razin Tujibi (traduzido para francês pela Universidade de Fez), de 1238, árabe a viver na Andaluzia; “Le Viandier”, de Taillevent, francês, talvez de 1300; Llibre, de 1324, de Sent Sovi, catalão; “Libro de Buen Amor”, de 1343, do castelhano Juan Ruiz; “Le Ménagier de Paris”, Anónimo, de 1392, francês; “Arte Cisoria”, de Enrique Villena, 1383, castelhano; Du Fait de Cuisine, Maître Chicart, 1420, piemontês; Libre del Coch, de Rupert de Nola, 1477, catalão…

Em todo o caso, entendemos bem a presença dos refogados com Domingos Rodrigues (1680) e com Lucas Rigaud (1780).

Sobre a vinha d’alhos, podemos inferir a sua existência nos finais do século XV, pois em Goa veio a ser transformada em “vindalho”. Esta técnica advém seguramente das marinadas tradicionais, que eram uma prática corrente para carnes escuras e caça.

Como conviveu a cozinha popular e regional portuguesa com uma cozinha aristocrática de matriz francesa, a partir do século XVI? 

Eram produzidas em simultâneo, mas não conviviam. Havia uma separação bem marcada. É certo que uma nova burguesia, surgida a partir do século XVI, tentava copiar a mesa da corte. Mesmo nos grandes palácios, a mesa dos senhores não era reproduzida ou influenciada pela mesa dos serviçais.

A Corte Portuguesa tentava seguir as modas do centro da Europa, França, mas a mesa real era relativamente pobre comparada com a comida espetáculo dos Palácios de Versailles ou Chantilly. Em Portugal, a mesa da Família Real era relativamente simples e pouco onerosa. Não se pode avaliar a alimentação dessas épocas quando se lêem os menus das refeições de Estado. 

DR


Até quando podemos recuar e identificar traços daquilo que é hoje a cozinha tradicional portuguesa? 

Há episódios na História de Portugal que nos remetem para ambientes culinários, mas que não representam a população portuguesa, como foram os banquetes do casamento do príncipe D. Afonso, filho de D. João II, que casou com uma filha dos Reis Católicos. Ora, neste caso trata-se de uma comida de corte desconhecida da população. Depois, temos o terceiro casamento de D. Manuel I, que apenas sabemos terem assado um javali para distribuir pela população do Crato. Ainda no século XVI, temos o famoso banquete que D. Sebastião ofereceu ao seu tio Filipe II. Como era período de abstinência de carne, apenas serviu peixes e mariscos, o que constituiu uma notícia em todas as cortes europeias. Banquete sem carne!! No século seguinte, com Gil Vicente, identificamos uma grande lista de produtos alimentares. Neste caso, é muito importante, pois seriam, na sua maioria, produtos aos quais o povo tinha acesso. É com Gil Vicente que surge a palavra “açorda”.

Sabemos que há tradições que perduram desde os romanos, outras desde os visigodos, muitas foram deixadas pelos árabes. Que povos lhe parece que marcaram mais a cozinha portuguesa?

DR

Conhecemos dos romanos as receitas dos seus imperadores (“O Livro de Cozinha de Apício”) com mais de dois mil anos. Não é aí que encontramos as ligações à nossa tradição alimentar. De facto, os romanos influenciaram e desenvolveram a cultura da vinha e da oliveira. E, possivelmente, o nosso gosto pelo peixe. O famoso “garum”, com produção industrial para a época, reencontramos por vezes em restaurantes que servem uma espécie de pasta de peixe.

É bom ler a famosa “Geografia”, que escreveu Estrabão. Aqui são descritos alguns territórios que hoje são Portugal e podemos ler a constatação da presença de alguns bivalves, pão e questões associadas à produção de vinho e cerveja. É possivelmente a primeira descrição do que seria o nosso território, escrito por um grego a viver Roma. Escrevia de acordo com o que as legiões romanas lhe contavam.

Na minha opinião, os árabes marcaram o nosso apetite para o doce e introduziram-nos à canela.

Olhando para alguns dos produtos com que Portugal se identifica com orgulho, será possível situar a sua introdução no tempo e no espaço?

Poucos têm orgulho em citar o bacalhau como produto. Não nasce na nossa costa, mas fomos nós que o tratámos e divulgámos. D. Fernando I estabeleceu um acordo (século XIV) com os reis da Inglaterra e da Dinamarca para podermos pescar o bacalhau nos mares do Norte. D. Afonso IV (1325-1353) faz referência ao negócio do bacalhau, vindo de Inglaterra, por troca com vinho do Minho, e é estabelecido o porto de Viana do Castelo para a descarga de bacalhau.

Depois temos o açúcar, do Funchal, que em 1498 se exportou para a Europa, 120.000 arrobas. O Brasil só começa com a exportação de açúcar a partir de meados do século XVI.

O nosso vinho é exportado desde o século XIV e é alvo de vários acordos internacionais. E em 1757 estabeleceu-se a definição de qualidade de um vinho, que foi o Vinho do Porto (primeira qualificação mundial)

O porco, nomeadamente — bísaro, de raça alentejana, outro — sempre foi rei?

O porco sempre foi um símbolo alimentar português. Era um símbolo de justiça e sempre foi o melhor alimento de subsistência. Nas palavras do Abade de Baçal, o porco era o verdadeiro mealheiro da economia doméstica. De alimentação fácil e não dispendiosa, a sua transformação após a matança era um isco de sabor para todo o ano.

O Abade de Baçal, Francisco Manuel Alves (1865-1947), escreveu assim sobre a importância cultural e sociológica do porco em Trás-os-Montes: “Nada admira que um povo primitivo, residente na área transmontana, prestasse culto ao porco, sem dúvida ainda hoje o animal mais prestadio da culinária transmontana; a sua melhor caixa económica, que se alimenta com todos os rebotalhos, assimilando tudo e tudo restituindo centuplicado em presunto, toucinho, unto, manteiga, lombo, salpicões e tabafeias divinais”.

Relativamente a algumas raças bovinas, como a maronesa, a barrosã ou a mirandesa, consegue-se ter o seu bilhete de identidade? 

Sim, todas as carnes qualificadas como Denominação de Origem Protegida (DOP) ou Indicação Geográfica Protegida o têm: Carne Cachena da Peneda (DOP), Carne Barrosã (DOP), Carne de Bovino Cruzado dos Lameiros do Barroso (IGP), Carne Mirandesa (DOP), Carne Maronesa (DOP), Carne Marinhoa (DOP), Carne Arouquesa (DOP), Vitela de Lafões (IGP), Carnalentejana (DOP), Carne Mertolenga (DOP), Carne da Charneca (DOP), Carne de Bravo do Ribatejo (DOP), Carne dos Açores (IGP).

O azeite em Portugal é um dos valores da cozinha nacional. Como é que ele surge num país mais atlântico do que mediterrânico? O olival foi introduzido pelos árabes?

Não sei, é um bem natural da natureza. Os romanos intensificaram o cultivo da oliveira, já existente (há 2.000 anos). E os árabes, posteriormente, desenvolveram-no. Nós mantivemos e melhorámos.

Fala-se muito de uma cozinha Ibérica. Há quem ache, inclusive, que a promoção da nossa gastronomia devia passar por essa aliança. Temos muito ou pouco que ver com a cozinha espanhola? 

Todos os territórios com fronteiras têm muita afinidade nas suas cozinhas. Temos nestes territórios muito em comum e especialmente no Minho e Galiza. Mas não concordo nada com a promoção conjunta das nossas gastronomias. A promoção deverá ser conjunta em termos de grande território, com as vantagens de terem culturas diferentes. 

Voltando ao porco, já agora: devemos dizer porco de “raça alentejana”, “ibérico” ou “preto”? 

Para mim,  só há uma designação: Raça Alentejana. “Preto” apenas define a cor da pele e não a qualidade. Em restaurantes, pergunto sempre se o preto é alentejano e respondem-me sempre “obviamente que sim”. Muitas vezes, percebe-se que não.

(Transcrição da sua definição legal: “Carne de Porco Alentejano (DOP) – Carne muito suculenta e de grão fino, obtida a partir de porcos da raça alentejana, abatidos entre os 8 e os 14 meses, inscritos no Livro de Nascimentos e filhos de pai e de mãe inscritos no Livro Genealógico Português de Suínos – Secção Raça Alentejana. A cor varia entre o rosa-pálido e o rosa-escuro, consoante a idade do animal, com gordura brilhante, firme, não exsudativa, embora, por vezes, excessiva à superfície das carcaças e de coloração branca. Carne extraordinariamente saborosa, decorrente da alimentação do animal à base de bolota e erva, livremente pastado nos montados de sobro e de azinho do Alentejo e regiões circundantes. Área geográfica (nascimento, cria e abate dos animais): corresponde grosseiramente ao Alentejo e a alguns concelhos limítrofes do Algarve, Ribatejo e Beira Baixa.”)

Falando agora de doces. É dos que acham que a doçaria portuguesa tem excesso de açúcar?

É um conceito errado. Basta vir ao Brasil para sentir o que é “excessivamente doce”. Eu sugiro com regularidade que não se deve reduzir significantemente a quantidade de açúcar em receitas tradicionais. O que devemos fazer é aprender a comer menos quantidade do doce já preparado.

A que é que se deve o uso generoso de açúcar e ovos na nossa doçaria? 

Portugal deve ter nascido com boca gulosa. Os árabes, que ocuparam grande parte da Península Ibérica, já dominavam o comércio e o consumo de doces. Desde a fundação que D. Afonso Henriques protegeu os comerciantes de açúcar e canela. Depois de conquistado o Algarve, D. João I tenta a produção de cana-de-açúcar, em 1404, concedendo o direito de exploração a um genovês. Negócio que não resultou. Depois, o Brasil foi a grande máquina produtora de açúcar. O açúcar era um benefício do ducado de Beja (D. Manuel) que, depois de ascender a rei, entregou esse benefício à Coroa Portuguesa. Sabemos da relação estreita entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica e o desenvolvimento de conventos e mosteiros a partir do século XV. O Convento da Conceição, em Beja, era protegido pela mãe de D. Manuel enquanto este ainda era o Duque de Beja. Mas a importância do açúcar tem referências anteriores. Como era um produto muito caro, e havia a necessidade de uma parte ser destinado às farmácias (especialmente para doenças do foro digestivo e do foro emocional), isso levou a que o açúcar fosse destinado para confecção apenas por mulheres, por determinação régia de D. João II. Mais tarde, D. Manuel, em 1496, decreta a “Proibição aos homens do exercício de alfeloeiros”, lei só revogada por D. João IV. Esta medida pretendia diminuir o consumo de açúcar, por ser também um bem importante para exportação.

Pelo atrás dito, o açúcar chegou com facilidade aos conventos e mosteiros femininos, que também os vendiam para o exterior e assim ajudavam as contas do estabelecimento. Por outro lado, nos conventos e mosteiros havia sempre alguns animais de criação onde dominavam os galináceos. Carne branca e fácil, destinada a preparos para doentes. Depois chega a “Canja”, vinda da Índia e rapidamente transformada como remédio por Garcia da Horta. 

Temos que pensar que a população destas casas religiosas não era apenas constituída por questões de Fé. Muitas senhoras da aristocracia portuguesa recolhiam-se nestas casas como uma residência final e assistida. Nestas circunstâncias, eram sempre acompanhadas de alguma fortuna e pelo menos duas empregadas sendo que, habitualmente, uma era cozinheira. Ora, são estas empregadas que terão dado origem à denominada doçaria conventual. Decerto que elas já saberiam fazer doçaria “rica”, visto nestas casas haver abundância de açúcar e, especialmente, todo o tempo do mundo. Este assunto é para uma conversa interminável…

Contam-se muitas estórias, em especial para a abundância de gemas. Estas sobravam, pois, as claras serviriam para engomar parte do hábito das freiras. Não há registos. As claras também serviam para clarificar e filtrar o vinho. E nos conventos, onde há “suspiros”, parece que sobrariam as claras…!

Sei que está no Brasil. De que forma o Brasil mexeu com a nossa cozinha? As malaguetas, por exemplo, são fruto dessa presença nas Américas, e explicam de alguma forma o nosso gosto por picantes? 

Mexeu pouco, a não ser a abundância de açúcar. Mexe mais no século XXI destruindo as características da doçaria tradicional, quando usam o leite condensado, a que eu chamo o ingrediente dos preguiçosos. 

Também foram importantes as frutas, como o ananás e o abacaxi, a pêra abacate e as malaguetas, que depois levámos para África.

Não sei se é generalizado o gosto pelos picantes. As pimentas entraram nos nossos hábitos alimentares tardiamente (séc. XIX), pois eram peças de troca importantes no comércio internacional.

E, fazendo a pergunta ao contrário: de que forma os portugueses mexeram com a cozinha brasileira?

Apesar de os brasileiros nem sempre gostarem muito de identificar algumas tradições com Portugal, essa presença é ainda muito evidente. Aqui, aconteceu, de facto, a primeira e grande experiência do que veio a chamar-se “cozinha de fusão”. A própria “feijoada à brasileira” tem este nome pelo feijão preto e por as carnes em vez de serem fumadas serem secas. Mas temos muito mais. A “panelada” são as nossas tripas à moda do Porto. O “baião de dois” tem origem no nosso arroz com feijão. A  “buchada” é o nosso bucho. A “galinha caipira” é o nosso frango ou galo do campo.

Nos doces, também a lista é muito grande. Desde os variados pães-de-ló aos pudins, e o famoso “quindim”, nascido com a chegada da Família Real, são as nossas “Brisas do Liz”, nas quais se substitui a amêndoa ralada por coco ralado. A “goiabada” é o sucedâneo da nossa marmelada, depois de se verificar o não crescimento dos marmeleiros aqui plantados.

Essas trocas são também notórias nas regiões ocupadas por Portugal, em África e na Ásia. Que pratos elegeria como simbolizando essa fusão de produtos e culturas gastronómicas, desde Goa à Malásia, passando pela Tailândia, China, Japão, Moçambique, Guiné ou Angola?

Ainda é fácil, hoje em dia, encontrar tradições portuguesas ou de fusão, em Goa: canja, vindalho, sarapatel, bebinca, bacalhau. Na Tailândia, a minha grande surpresa foram os fios de ovos, vendidos em caixas na rua ou a sua presença em refeições de prestígio. No Japão, temos que citar a tempura, a castela (espécie de pão-de-ló) e as tortas enroladas, chamadas em alguns locais de “bolos portugueses”.

Gostava que me falasse de arroz. É um produto muito presente na cozinha portuguesa, ao contrário do que se passa na Europa em geral (à excepção de Itália e Espanha) mas sobre o qual subsistem dúvidas. Há quem diga que o nosso carolino, tido como a variedade mais tradicional, terá vindo da Carolina (EUA), onde foi introduzido por escravos africanos, porventura da Guiné. Faz algum sentido? 

Consta que D. Dinis, a partir de 1279, terá feito uma campanha para a “Introdução da produção de Arroz”. Os árabes que aqui estiveram já consumiam arroz. De arroz se fazia uma farinha, na Época Medieval, que era muito apreciada na doçaria. Encontramos arroz-doce em vários conventos da região de Coimbra e aí o arroz já seria carolino. Essa estória dos negros e da Carolina não está documentada e eu tenho pouca convicção. De facto, o arroz carolino é a expressão obrigatória para os nossos arrozes mais identitários: malandrinho, cremoso e doce.

Há muito debate sobre o que é a tradição culinária. Como definiria o que é uma cozinha tradicional? Como é que ela se forma? Qual o seu valor? Porque a devemos valorizar? 

Permita-me transcrever um pequeno texto de Joaryvar Macedo, de 1977, no livro Origens de Juazeiro do Norte: “Tradição é a transmissão oral de fatos lendários, de idade em idade. Tradição através dos tempos, de fatos que nos chegam deturpados. Tradição é termo que vem do verbo latino tradere que significa também trair. Tradição é também traição.”

Vejamos o que poderá significar na primeira metade do século XXI. Para mim, a tradição, que dá identidade regional, começa pelos produtos, incluindo aqueles que já existiam antes da humanidade alterar a natureza.

Estamos na altura do Natal. Há um Natal distinto, à portuguesa? 

O Natal à portuguesa tem um emblema do dia de Consoada: o bacalhau com todos. No Norte, junta-se também o polvo cozido com todos e, em alguns casos, arroz de polvo com filetes do mesmo. Tão importante como o bacalhau é o conjunto de doçaria popular e doçaria mais requintada, que se serve neste período. Depois, a partir de meados do século XIX, veio o bolo-rei, que ficou bem presente.

Antes de se pescar bacalhau, sabe-se qual era o prato principal da consoada?

Não, imagino que seria peixe ou possivelmente polvo, que já era seco e depois hidratava-se. Também o congro chegava facilmente ao interior e as únicas especialidades, ainda hoje, estão ligadas a Trás-os-Montes e Beiras.

Como costuma ser a sua mesa ideal de Natal? 

Há 17 anos que não passo o Natal em Portugal. Já anteriormente, sempre que podia dava um pulo de uns dias até Marrocos para apanhar sol. Aqui tive alguns divertidos jantares, não “à portuguesa”.

Aqui, no Brasil, é diferente. De criança, lembro-me do espírito de Natal que agora não existe. Agora, mais parece uma celebração do comércio, de ofertas muitas vezes inúteis: dia 26, é triste ver o lixo acumulado nas ruas com os restos das embalagens dos presentes.

Aqui, como bacalhau e polvo cozido com todos e doçaria portuguesa. Este ano, fiquei-me por rabanadas, tarte de amêndoa, e bolo-rei.

Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista

 

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