A essência da epopeia literária, independente da sua época, latitude ou forma, é uma narrativa que procura consolidar uma determinada identidade. Como na fase do espelho de Lacan (fase entre os 6 e 18 meses em que uma criança já se consegue identificar num espelho), a epopeia literária reflecte-nos um conjunto de características, valores e costumes que nos fazem sentir parte de um povo.
Muitas vezes esta identificação ou “conceituação” de um sentido de nação forja a união a partir de fragmentos dispersos na história de um país. Em quase todas as narrativas épicas, o vórtice dessa imagem no espelho ideológico converge em torno de um herói com uma missão idealizada, decorrente do seu próprio destino e que o eleva a um alter ego nacional.
Também nós, enquanto portugueses, temos um espelho decorrente de uma narrativa épica. Em «Os Lusíadas» de Luís de Camões, Vasco da Gama e a frota portuguesa enfrentam o seu espelho épico da fama, do sucesso e da fortuna, em pleno oceano, enquanto desenham a rota marítima para a Índia.
Camões é um escritor improvável para um grande poeta épico. Embora sendo tecnicamente um nobre, ele não era particularmente bem-nascido, e as suas obras parecem querer sugerir que sua vida era bem menos dedicada à literatura do que ele fazia transparecer.
Paralelamente, os detalhes que hoje conhecemos sobre Camões delineiam uma existência demasiado aventureira para alguém com a sua vocação literária: a perda de um olho numa batalha contra os mouros no norte da África, um naufrágio junto à costa do Camboja e a ruína financeira/moral por terras de Ceuta, Goa, Moçambique e Macau.
No entanto, este escritor pouco dedicado e aventureiro de ocasião consegue fazer duas coisas que nenhum outro poeta conseguiu. A primeira delas tem a ver com o recuperar do orgulho lusitano. A missão de Vasco da Gama, n’Os Lusíadas não era “só” a de chegar à Índia, aliás atrevo-me mesmo a dizer que isso nem seria o mais importante.
O imprescindível era mesmo cumprir e fazer cumprir um novo ideal-eu do inconsciente português: aquele que está relacionado com o mar, com a descoberta, com as conquistas e com o renovado orgulho lusitano, não só tendo por base o passado glorioso de proezas como também no nosso nobre legado cultural.
Na visão que Camões nos dá n’Os Lusíadas, os outros heróis que ficam para a história, como Aquiles, Ulisses e Enéias, não se imortalizaram por aquilo que eram ou pelo que conseguiram, mas antes devido aquilo que fizeram ter moldado a unidade cultural e promovido uma forte união enquanto povo.
Para igualar o feito desses heróis gregos e perante o eminente cessar da época de ouro dos descobrimentos portugueses, Camões procura através de Vasco da Gama recriar o espírito que engendrou a conquista do nosso antigo império. Um século de retrospectiva inspirou-o a criar dois espelhos, um com o império em declínio, e outro com um inconsciente nacional unificado, baseado nas glórias do passado e que nos conduziria, de novo, ao topo.
A segunda característica inovadora da nossa epopeia literária tem a ver com as reflexões que o poeta vai deixando um pouco por toda a obra, algo nunca antes feito. Luís de Camões decidiu assim relacionar as suas reflexões com a restante epopeia, demonstrando na maioria delas o seu descontentamento com a sociedade da época e, em algumas delas, sugerindo soluções para que saíamos da “cepa torta”.
Particularmente interessantes são as reflexões do canto VI, onde o poeta explica o segredo para atingirmos a verdadeira glória (segredo esse que é o … trabalho!!!), mas também cria uma certa dicotomia entre amor e gastronomia. Confessem lá que por esta não estavam à espera!!! 😉
A referência ao amor, ao vinho, à gastronomia (sobretudo manjares e banquetes) e ao prazer que eles nos trazem (e que nos levam a ter privilégios quase divinos) acontece inúmeras vezes, das quais destaco uma, feita por Vênus, aquando de seu diálogo com Cupido com vista à criação da Ilha do Amor:
“Ali, com mil refrescos e manjares, Com vinhos odoríferos e rosas, Em cristalinos passos singulares, Fermosos leitos, e elas mais fermosas. Enfim, com mil deleites não vulgares, Os esperem as ninfas amorosas, De amor feridas, pera lhe entregarem Quando delas os olhos cobiçarem.”
Este canto, para além da óbvia relação entre mar, vinho, gastronomia e amor, mostra-nos que somos um povo pequeno na dimensão mas grande na alma, que cumpriu ao longo da sua História, a missão de transmitir os seus valores, as suas crenças e os seus costumes. Esse povo, o nosso povo, abriu novos mundos ao mundo, e mostrou que mantendo-nos fieis às nossas origens, seremos capazes de concretizar, de novo, o Portugal das descobertas e fugir à vulgaridade que tanto assustava Camões.
Uma das maneiras que nos resta de continuar a espalhar este amor fraterno e puro gosto de cantar as virtudes da terra a que pertencemos, sem deixar o nosso legado culturalmente ligado ao mar, é, como o nobre poeta lusitano deixou bem claro no canto VI, a gastronomia.
O restaurante que vos falo hoje, o Salpoente honra não só essa ligação ao mar como também faz um bonito tributo, através da gastronomia, às gentes e matérias-primas da região da Ria de Aveiro, recriadas numa cozinha de excelência e com identidade.
Continua instalado mesmo em frente ao canal de São Roque, num edifício único que um dia foi um armazém de sal, exibindo um ambiente rústico-refinado e uma cozinha de autor, conceptualmente tradicional, determinadamente contemporânea.
A tudo isto que já sabíamos do passado, o Chefe Duarte Eira acrescentou um fio condutor a todo o menu, mais texturas, melhor empratamento e elegância nos sabores. Todo o menu, cheira a Aveiro, celebra Aveiro e reinventa Aveiro. Iniciou com um Rissol de berbigão em panko e tinta de choco, e maionese de coentros carregado de mar, frescura e uma ligeira untuosidade.
Esse rissol surgiu na companhia das Ostras ao natural perfumadas com manga, coentros, lima, malagueta e codium, que ao cristalino sabor marítimo das ostras acrescentava uma trilogia organoléptica (doce, picante e doçura) interessante, fazendo despertar a atenção de todo o palato para a restante proposta gastronómica.
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