Um dos vinhos do seu portfólio de que mais gosta chama-se Eremitas – e não será por acaso. Mateus vive a cinco minutos da Vila de Foz Côa, mas “longe de tudo”. Para ir a um supermercado “decente” tem de andar uma hora de carro, até à Guarda.
“Isto é o deserto”, há-de dizer, referindo-se não tanto à geologia quanto a uma sensação psicológica e a uma meteorologia. No dia em que o visitei, o termómetro pouco passava dos 30 ºC, mas frequentemente chega aos 40ºC. Na sua quinta, onde tem vinha e casa, acompanham-no os filhos e a mulher, a enóloga basca Teresa Ameztoy, que conheceu quando estudou em França (“muito melhor aluna do que eu”).
O sítio mais fresco é a adega, que construiu com o amigo e arquitecto Pedro Jervell, do ateliê Skrei — um buraco escavado na terra, como se fosse uma gruta dos neandertais que habitaram a região há 70 mil anos. É aqui que Mateus, 44 anos de idade, guarda parte do seu portfólio, onde entram os Transdouro Express, os Curral Teles e os Eremitas, estes feitos da casta branca rabigato, a menina dos seus olhos.
Em todo o caso, enquanto me guia por entre cubas de cimento e inox, percebe-se que o que o emociona são as pequenas experiências que vai mantendo em pequenos vasilhames de vários feitios, como uma pedra de granito esventrada, onde quer começar a guardar certas colheitas.
Este impulso vanguardista tem uma genética de há pelo menos cinco gerações. Neto de Fernando Nicolau de Almeida, o visionário do Barca Velha; filho de João Nicolau de Almeida, criador do Duas Quintas e das polémicas vinhas verticais, Mateus gosta de procurar novas soluções, tendo sempre presente as várias possibilidades do Douro, dos seus solos e do seu clima.
Nunca lhe passou pela cabeça fazer uma coisa diferente do que fazia toda a sua família?
Mas podemos fazer coisas diferentes, trabalhando no vinho. O meu avô fez coisas completamente diferentes do que tinha feito o pai dele. E o meu pai fez diferente do que fez o meu avô. De resto, hoje em dia uma pessoa acha o Barca Velha altamente, mas na altura aquilo foi uma irreverência, era algo novo. A Ferreira era bastante tradicional. O Barca Velha só aconteceu porque o meu avô era muito obstinado e levou a cabo um grande trabalho de investigação.
Quais são as imagens que guarda do seu avô Fernando?
Lá no Porto, na Foz, em casa deles. O meu avô tinha um castelo para afugentar os inimigos. Era alguém com várias personalidades, várias paixões. Era o vinho, mas também o desporto, por exemplo. Foi campeão nacional de ténis e de golfe. Era um desportista a sério, como já era o pai dele. O meu bisavô fundou o Lawn Tennis Club da Foz.
Mas o meu avô também se dedicava muito à pintura. Vou mostrar-te uma coisa.
[Neste momento, Mateus levanta-se do sofá onde decorre a entrevista e vai buscar um livro. Senta-se e abre-o. É um álbum de pinturas de Fernando Nicolau de Almeida, muitas delas alusivas ao vinho. Detém-se em particular num desses quadros, que mostra todo o processo de vinificação através de desenhos alegóricos e oníricos. “Só fazia freakalhada. Este quadro, por exemplo, é gigante”, indica, apontando para uma pintura representativa das várias fases da produção do vinho. “Isto é a fermentação, olha aqui as leveduras. Aqui está a remontagem”. Mateus explica que o álbum é uma edição da família, com base nas fotografias dos quadros. “Não era um bom pintor, era só para a risota”, sublinha, voltando à imagem. “Aqui está a mostrar como se passa o vinho a limpo. Aqui, a tirar as borras. Depois, isto são colagens: com gema de ovo, bentonite; em Gaia, chama-se conserto: consertar os vinhos. Mais à frente a pasteurização, na altura havia muito, depois a filtração e o engarrafamento. Está cá o processo todo.]
Vem de uma família aristocrata?
Não, burguesa. Aristocrata do lado da minha mãe, que também está ligada ao vinho. A Foz é alta burguesia. Mas o meu avô era fora do esquema.
Que idade tinha quando ele morreu?
Morreu em 1998, tinha 20 anos.
Eram próximos?
Somos 20 primos, netos dele. E isto numa sociedade em que os pequenos não existiam. Éramos as baratas. Mas eles eram muito brincalhões. Em casa dos meus avós, havia festas atrás de festas, coisas loucas, faziam disfarces. Nós não podíamos ir a muitas coisas. Éramos escumalha. Mas quando íamos, nos jantares, por exemplo, tínhamos de levar gravata e blazer para a mesa.
Os miúdos já bebiam vinho?
Sim, sim. Mas bebíamos JP. Quando eu tinha 15, 16 anos, achávamos o Barca Velha uma porcaria, era horrível. Tinha madeira, não era um vinho para crianças. E o meu avô punha aquilo na lareira. O que era bom era o Constantino, do Dão, que era da Ferreira. Ele também fazia esses vinhos e eram óptimos, foram um marco. Ligam sempre o meu avô ao Barca Velha, mas ele fez muito mais. Todos os Vintage de Ferreira do século XX, dos primeiros 50 anos, todos os da Constantino, fez Bairrada. A Ferreira era enorme.
Lembra-se de falar com ele sobre vinhos?
Nem pensar. Nem com o meu pai. O meu pai conta que a primeira vez que fez um vinho seco, em Vale Pradinhos, – a Ramos Pinto não fazia vinho seco, isso era para beber nas cantinas ou para destilar -, na primeira vindima mostrou ao meu avô e perguntou-lhe: “O que achas disto?” Ele cheirou – não provava, só cheirava, chamavam-lhe O Cheirista – e virou-se para o David, que era o ajudante de provas, e atirou: “Ò David, tira-me esta merda daqui”. O meu pai ficou com uma depressão. Isto para dizer que nasci no meio do vinho mas não se falava de vinho. Não se falava. Era trabalho. Nem o meu pai nunca me explicou nada. E quando comecei a fazer vinho, tal como o meu irmão, ele não explicava nada. Não se falava sobre o assunto, era algo secundário.
O que teria feito se não tivesse entrado nos vinhos?
Não sei. O problema é que como não sabia, parei no vinho. Tentei arquitectura paisagista, tentei fotografia…
Acabou por ir para Bordéus? Como é que isso aconteceu?
Naquela altura, nem sequer se sabia bem o que era um enólogo. Eu queria era sair de Portugal, estava farto daquele ambiente circular da Foz. Nos anos 1990, o Porto não tinha grande vida e queria descobrir algo fora dali. Fui para Bordéus fazer uma vindima. Tinha-me inscrito em enologia na UTAD, mas não entrei, apesar da média ser negativa. Estava-me a borrifar. Depois, em França, o meu pai arranjou-me contactos. E quando acabei a vindima, telefonei para casa a dizer que ficava por lá. Acabei por ficar lá a estudar em Bordéus com um amigo do meu pai, que era um barra e achava que eu também era. Passados dois anos descobriram que eu não era um barra e mandaram-me passear.
Mas continuou por lá, certo?
Entretanto, encontrei um grande mestre, o Denis Dubourdieu. Não há um vinho branco no mundo que não tenha a influência dele. Ele revolucionou os brancos nos anos 1980. Era alguém que fazia várias experiências em laboratório. Aquilo em Bordéus era tão longe do que se fazia aqui. Tinham vários laboratórios, estavam sempre a estudar. Dedicavam-se a investigações seríssimas. Cá, era zero. O meu irmão estudou na UTAD e eu de vez em quando perguntava-lhe: “O que estás a estudar aí?” Ele ainda estava na Idade da Pedra.
E o que fez com o Dubourdieu?
Ele convidou-me para trabalhar nos Chateaux dele. Era um mestre, um gajo insuportável, lixado como o aço. Morreu há pouco tempo [morreu em 2016, com 67 anos].
O que aprendeu de mais importante com ele?
Saber o que estamos a fazer. Podemos criar as filosofias todas que quisermos, mas temos de saber o que estamos a fazer e porque é que estamos a fazer. Quando saí de lá e quis fazer os meus vinhos foi para desconstruir tudo o que aprendera. Não queria fazer o mesmo. O que aprendera em Bordéus fazia sentido lá. O meu trabalho, depois, foi perceber o que teria de fazer aqui, no Douro. Mas com o mesmo método: saber o que estamos a fazer.
Isso é ciência?
Não sei bem se é só ciência. Não é só a molécula.
De Bordéus voltou logo para aqui?
Não, não. Houve várias peripécias pelo meio. Estive na Califórnia, Chile, Espanha, Argentina. Em vários sítios de França, porque o Dubourdieu fazia consultorias em vários sítios.
De qual desses países gostou mais?
França, claro. Podemos dar 30 mil voltas às coisas, mas quem sabe de vinhos são eles. Itália tem coisas bestiais, Espanha também, Alemanha e Áustria idem. Espanha vai até à Rioja e não mais. Tens o Vinho do Porto. E depois o Novo Mundo é engraçado, mas…
A Austrália veio mudar o paradigma?
Austrália e EUA trouxeram coisas interessantíssimas ao vinho e abriram os mercados. Aliás, a Austrália tramou-nos. Até finais de 1940, Portugal era o primeiro exportador de vinho para Inglaterra. Imagina que isso acontecia ainda, agora! Estávamos todos ricos. A Austrália deu um forte empurrão para que essa queda acontecesse, depois da Segunda Guerra Mundial.
Quando assentou no Douro Superior, então?
Em 2003. O meu pai já tinha a quinta aqui. Depois, através do meu pai conheci outros sócios que haveriam de entrar na Muxagata [onde entretanto já não tem qualquer participação].
Quando foi que fez o seu primeiro vinho?
Foi em 2003.
Estava bom?
Não estava mal, mas… A pessoa que eu era em 2003 não é a que sou agora. E 2003 foi o ano da canícula. Muito calor. Ardeu tudo. Todas as fermentações pararam. Dizem que foi parecido com 1820, quando se estabeleceu que o Vinho do Porto haveria de ser como é, com a adição de aguardente no vinho antes de seguir para embarque. É preciso lembrar que em 1820 não havia o costume do sulfuroso, ainda. O sulfuroso foi mais tarde inventado pelos franceses, que acabaram depois por espalhá-lo em Portugal. Há, aliás, um relatório no final do século XIX, em que alguém faz uma rota para ver o estado da viticultura, e em que se diz: “Em alguns sítios, já estão a usar sulfuroso. É preciso ter atenção para não afrancesar demasiado os vinhos”.
Usava mais sulfuroso em 2003 do que agora?
Sim, muito mais. Foi diminuindo. Mas, atenção. Acho que não se pode chegar a um sítio e dizer: “Vou fazer vinho num bidão e depois aquilo azeda e é porreiro”. Não. Eu sei o que é fazer vinho. É preciso estudar como se pode fazer de certa forma ou de outra.
Nunca teve um azar, daqueles de ficar sem uma colheita inteira?
Milhares de azares. Mas ficar sem uma colheita inteira, não. Felizmente. Eu vivo disto. E quando começam os vinhos a azedar, meu amigo…
O que acontece?
Vem a química toda. Não na vinha, que já não é possível fazer nada aí. Mas na adega: aumenta-se sulfuroso, tartárico… Tudo dentro dos limites definidos na lei da produção biológica na União Europeia, atenção.
O seu vinho é todo certificado biológico?
Nem todo. Nos meus vinhos do Trans Douro Express e outros, eu tenho de ir buscar uvas a todo o Douro. Tenho de comprar uvas e ninguém tem produção biológica. Nem no Douro, nem no resto do país. Há muito pouca produção biológica em Portugal, é vergonhoso. Portugal é uma risota. Durante 10 anos fui o único produtor biológico de todo o Douro Superior. É grave. E de resto a certificação nem me interessa muito. Só em algumas partes, porque dá mais ajuda financeira.
O seu pai apoiou-o na opção pela produção biológica?
No início foi ao tecto. “Estás a fazer o quê?” Vem de uma geração que mecanizou o Douro. O Douro era medieval. Mas hoje em dia é pior do que eu, no sentido de ser a favor do biológico.
O que terá mudado na cabeça dele?
Simplesmente começou a trabalhar numa época em que o que era necessário era a mecanização. É muito perigoso falar de bons e maus nisto. Tem é de se perceber as realidades. Uma era a que existia há 40 anos, outra a que existe hoje. Os objectivos eram diferentes. Somos todos adultos, não há o mau e o bom. Todos querem o bom. O meu pai, com a minha idade, fazia o oposto do que eu faço. Mas com a mesma intenção de melhorar as coisas.
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
Partilhe este texto: