É um petisco nacional, uma ode ao mar e ao sabor. A caldeirada consubstancia o melhor de dois mundos: peixe e concentração sápida, pela forma simples como é cozinhada. Símbolo do “saber fazer” dos pescadores, da alma nacional e da culinária tradicional, os seus principais artefactos são um tacho, lenta cocção e, claro, a matéria-prima em que somos exímios: diversidade de pescado fresco atlântico. O segredo está no caldo que se molha no pão e no modus faciendi.
Não há como resistir. Quando a diversidade de texturas e sabores de peixe aterram (ou amaram, neste caso) numa cama de batata às rodelas, tomate, azeite e cebola, aquele caldo retém de forma ímpar o sabor. No fundo, é um cozido em versão marítima. Quase épico.
O receituário nacional dos pescadores está pouco explorado, mas traduz narrativas de memória e tradição que nos explicam. Ser português é gostar de caldeirada. O processo estende-se, por vezes, também à carne, nomeadamente ao cabrito. Asseguramos que funciona, sendo muito usual em Angola e Moçambique, a mostrar como a nossa cozinha é global, pois as ex-colónias eram noutros tempos parte integrante do território português e assim se adaptaram modus faciendi à lei da autarcia. Por isso, a caldeirada viajou também para o Brasil, S. Tomé e Cabo Verde.
A chamada caldeirada é uma forma de cozinhar de matriz bem portuguesa. O sabor desse caldo alquímico facilmente demolhável no pão (tal como uma açorda) é memorável. Singular ainda é o facto de ser um prato feito sobretudo por homens, seguindo a tradição piscatória, ainda hoje.
A caldeirada bate no coração da gastronomia lusa, de inspiração litoral e popular. Abebera tapada para ganhar em sapidez. O pão, sempre presente como conduto que ajudava a dar substância ao procedimento, acabava por tornar mais reparadora a refeição, a par do milho ou da massa. E, nos barcos, usava-se água do mar que ainda a torna mais rica.
Mais uma vez, é nas tradições populares da terra, ou, neste caso, do mar, que o prato emblemático nasce. Mas D. João VI era grande fã e Júlio César Machado criou ele próprio uma caldeirada acrescentando…enguias e caril. A enguia faz, aliás, parte do repertório da famosa versão “à fragateiro”. Mas os romanos e os gregos já as apreciavam.
Era exatamente nos barcos dos pescadores que se confecionava e, por essa mesma razão, os procedimentos são simples. O que reina é o sabor do peixe fresco. Neste caso, as caldeiradas eram feitas em caldeiras, um tacho específico, abraçadas em sucessivas camadas de batata, e cebola. Tudo “em branco” e nada de estrugidos, portanto. Tudo borbulhava a baixa temperatura, tapado (abafado, como nas caldarias romanas) e, no final, um molho feito de azeite, louro, salsa, pimenta e alho era deitado por cima. Um pitéu.
Da “bouillabaisse” à caldereta das Astúrias, o cacciuco livornense italiano ou a calderada galega as caldeiradas são típicas das populações ribeirinhas, mas cada uma acrescenta-lhe o seu cunho específico. Da Póvoa a Viana ou Ovar, do Ribatejo ao Algarve, todas as populações litorais têm a sua tradição da caldeirada.
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