Crítica de Restaurantes
Bonjardim Boutique Hotel Restaurant & Wines
Não se tropeça no Bonjardim. Para se lá ir é preciso entrar no eucaliptal da Sertã e depois sair da auto-estrada, sem nunca tirar o olho do GPS. A estrada vai-se estreitando à medida que nos aproximamos do Nesperal, até ficar da largura de um carro, e a floresta dá lugar a hortas e prados, montes e vales, muros de pedra de um lado e do outro em ziguezague por aldeias de postal.
Um dos grandes prazeres na vida, é conduzir para um restaurante onde nunca fomos. Muitas vezes, gosto de ir antecipando o menu de acordo com a paisagem. Se for junto à costa, a cabeça enche-se de peixes de grelha. Se for no Minho, entram bois e costeletas, couves e fumeiro. Aqui, imaginei pratos de capoeira e também cordeiro e cabra, cozinha de tacho, bem como hortaliças dos produtores da região.
Não foi bem assim, mas a surpresa faz parte da experiência no Bonjardim Boutique Restaurante.
[O nome pomposo teria sido suficiente para me afastar. Restaurantes chamados “boutique” são, frequentemente, falsos. Devemos desconfiar deles como desconfiamos de uma mala Louis Vuitton comprada no Ali Express. Mas uma amiga, que descobriu o sítio por acaso, convencera-me de que não tinha nada a ver. E não tinha.]
A primeira impressão foi a de ter ido comer a uma vinha. No estacionamento, videiras altas bordejadas por castanheiros, floresta e uma moradia. Saí do carro e em redor não vi ninguém, em fundo só passarinhos a cantar. Acabei por subir ao primeiro andar da tal moradia.
“Boa tarde, seja bem-vindo”, atirou-me uma figura saída de um livro de Hans Christian Andersen. Tinha umas barbas compridas muito brancas, o corpo pequeno e frágil, os olhos azul-acinzentados e cintilantes. Quando franzia o sobrolho lembrava um perigoso druida, mas assim que sorria tornava-se num avozinho simpático. “A sua mesa está aqui”, disse em português germânico, encaminhando-me depois para um varandim em madeira.
Em cima da mesa, pousou um jarro de água fresca com um gomo de limão no gargalo. “É da nossa nascente. Analisamos a água e engarrafamos”, explicou. Assim que dei o primeiro gole e relaxei, a vinha aos pés, senti que não seria preciso muito mais para me convencer. Mas havia mais.
A refeição começou com dois copos. Aparentemente tinham ambos polpa de fruta. “Um é de mosto de uva Alvarinho, o outro de Fernão Pires. Prove e tente adivinhar a casta, por favor”, desafiou o homem. A acidez do Alvarinho denunciou-o. O teste lembrou-me quão bom é sumo de uva e quão raro é encontrá-lo.
Daqui para a frente, entrou-se nas bebidas de adulto. Para refrescar, um shot de cerveja artesanal, feita com mistura de uva Syrah da quinta, na fábrica da Post Scriptum, na Trofa. Já com pão caseiro e azeite de produção própria na mesa, eis um rosé de Fernão Pires e Touriga Nacional, bem seco, sem açúcar residual.
“Quem fez isto?”, perguntei. “Nós”.
[Hubertus Johannes Lenders e Wilhelmina Lenders vieram da Holanda. instalaram-se na Quinta da Portela, onde fica o Albergue do Bonjardim, há três décadas. Procuravam um sítio no campo, onde pudessem pôr em prática uma vida sustentável e tranquila.
À chegada, já havia vinha, mas eles nada sabiam do assunto. Hubertus foi então a Lisboa pedir ajuda. “Quer fazer vinho mas não tem nenhuma experiência?!”, admirou-se um técnico do Ministério da Agricultura, dando-lhe depois para a mão um livro que se revelaria essencial. Chamava-se “VInho – Sua Preparação e Conservação”, o clássico de Octávio Pato, filho de Mário Pato, tio-avô de Luís Pato.
A viticultura e a vinificação evoluíram muito, desde então, mas Hubertus sempre fez tudo com base no tal livro. De resto, passou toda a produção para o modo “biológico”, quando ainda não estava na moda. Nasceram então os vinhos Bonjardim, 11 mil garrafas por ano, quase tudo para exportação.]
Sobre a ementa nada a dizer. Até porque não existe. Há dois menus, um de 35 euros, outro de 50, com sete pratos. Mas a ideia é deixar o mistério no ar.
Aterra então na mesa o prato de peixe. Vem numa tábua de madeira, rústica. “Sabe que peixe é?”, pergunta Hubertus. O filete lasca e isso confunde-me. Podia ser peixe de água doce, mas também podia não ser. “Lúcio-perca, do Rio Zêzere”, acaba por assumir. A escolha vai ao encontro da filosofia de usar só produtos regionais, opção que se estende ao acompanhamento: uma recriação — nórdica, diria — das migas de couve, aqui crocantes, poupadas de azeite e alho, e servidas com umas natas frescas, muito elegantes, infusionadas com rebentos das vides de Touriga Nacional.
Entretanto, os vinhos seguem-se uns aos outros, todos originais e saborosos, limpos, livres de maquilhagem enológica.
A refeição termina com um colheita tardia a acompanhar o “Mais que Nata”. O prato traz banda sonora. Assim que o pousa na mesa, Hubertus liga a coluna exterior e põe a tocar “Mais que nada”, a célebre música de Sérgio Mendes. No prato, mini-pastelinhos de nata, lemon curd, mousse de frutos amoras, outra de chocolate e canela.
Hubertus aproxima-se, no final. “O que achou da refeição?”
É difícil responder. Como classificar o Bonjardim? Este almoço foi insólito, inesperado, encantador. Tive a sorte de o restaurante estar praticamente só para mim, contando sempre com a atenção de Hubertus (fui a meio da semana, sábados e domingos não será bem assim). Conhecer os seus vinhos, a sua casa, poder repousar da viagem naquele cenário, foi extraordinário.
Os vinhos, ainda assim, parecem-me acima da cozinha, talvez porque a parte da restauração do projecto — que conta também com turismo rural — só começou a funcionar em 2019.
De resto, mais do que tudo, Bonjardim é um lugar único, com pessoas únicas. E só isso vale a viagem.
O Centro Geodésico de Portugal tem mais do que eucaliptal.
Quinta da Portela, 6100-459, Nesperal, Sertã. Reservas em info@bonjardim.eu e 96 908 0788
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
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