Volto a Paris com regularidade, desde há 20 anos, sempre em Agosto. Nos primeiros tempos, ficava na Rive Gauche e era capaz de passar uma semana sem cruzar o Sena. Adorava o mercadinho de rua da Place du Monge e o quotidiano blazé dos poucos parisienses que ficavam na cidade durante o Verão.
Deambulava pelas lojas da Boulevard Saint-Germain, inspirava o ar soixante-huitard dos cafés e deitava-me a repor energias no Jardim do Luxemburgo. Por uns dias, sentia a emoção de usufruir de uma capital histórica quase sem turistas, misturando-me com figuras saídas de um livro de Michel Houellebecq.
Por causa disso, passou muito tempo antes de começar a explorar a Rive Droite. Só nos últimos dez anos comecei a instalar-me aí. Vi o bairro de Belleville antes de ser um reduto hipster; andei por Le Marais quando ainda se afirmava como idílio de artistas; e assisti ao crescente entusiasmo dos locais com objectos antes praticamente proibidos, como o hambúrguer.
Hoje, como pude comprovar numa escapadinha de quatro dias em meados de Agosto, Belleville continua a ser dos bairros mais estimulantes da cidade, misturando o ambiente de Chinatown com um abrigo decadente de poetas, pobres e hipsters. Mas já Le Marais pode ser, actualmente, tão falso e denso quanto uma chanfana servida nas Portas de Santo Antão.
Dediquei-me também a redescobrir bairros clássicos de guia turístico — sem máscara, que aqui já não é obrigatória para quem anda na rua. Quando saí das grandes avenidas de Montmartre e Pigalle, por exemplo, encontrei outra vez a vivência contemplativa dos moradores locais.
E no Quartier Japonais assisti ao furor pelo ramen: de todas as filas que se podem ver à porta de estabelecimentos comerciais, nos dias de hoje, as maiores — à excepção da fila do clássico Bouillon Pigalle, imbatível — são as dos restaurantes de ramen situados na Rue de Saint-Anne e adjacentes.
Paris continua a ter muitas opções para quem gosta de comida. Estas foram as minhas. E foram bem boas. Au revoir, Paris.
Capitale
Para o pequeno almoço, que pode ser tardio (das 9.30 às 17.30), a escolha recai no novíssimo espaço inaugurado pela bartender mais influente de Paris. Margot Lecarpentier, mixologista e fundadora do bar Combat (ver mais à frente), põe aqui a sua criatividade ao serviço da cozinha de sólidos, mas não só. O ícone do Instagram é a sua croissandwich, um croissant recheadíssimo (abacate, fiambre, tomate, maionese caseira). De resto, é tudo especial e caseiro e com o toque de génio de Margot. Se acha que o gaufre é uma coisa enjoativa, por exemplo, experimente o da casa (pouco doces), servidos com natas ácidas e geleia de ruibarbo. No capítulo das bebidas, a fasquia é também elevada. O “cold brew latte” é superior, tal como o “café camomille”, com a flor seca a boiar. Há ainda mocktails e cocktails, para começar o dia cheio de energia. Eu experimentei o Cococha, com cachaça infusionada de óleo de coco, vermute, vinho Manzanilla e zest de laranja. Para além de estar aberto em Agosto, também abre ao domingo. Uma raridade.
La Fontaine de Belleville
Quando cheguei ao La Fontaine, ia com a ideia de experimentar um dos melhores cafés da cidade. Já fui tarde. Os antigos proprietários que haviam elevado a qualidade da torrefação e da comida deste clássico de Belleville, tinham saído há uns meses. Ainda assim, a visita valeu muito a pena. Para quem vai a descer até ao Le Marais e quer fazer uma pausa, o meu conselho é que se sente na esplanada com um expresso e, eventualmente, um oeuf à la coque, para ir molhando com tiras de pão, enquanto assiste ao lânguido quotidiano dos franceses.
Le Verre Volé
Antes de se sair de Belleville, não se pode esquecer o Le Verre Volé. De caminho passei lá e reservei para o jantar. Revelou-se muito acertada a indicação para ficar na sala da entrada; a outra, nas traseiras, é muito fechada e não tem o mesmo encanto. O Le Verre Volé é uma instituição parisiense dos chamados vinhos naturais, com mais de 20 anos. Mas pode-se — deve-se — ir lá também só por causa da comida e do ambiente informal e festivo. Na verdade, viria a ter aqui das refeições mais felizes de sempre em Paris. A cozinha mistura conforto de bistrô francês com surpresa e produto de época. Neste dia, provaram-se as pataniscas de bacalhau com molho pil-pil (de meter inveja a muita avó portuguesa); um extraordinário tártaro de carne de vaca com feijão verde; a salada de tomates verdes (coração de boi) com mozzarella de búfala e atum confitado; e, um dos mais pedidos da casa, a salsicha artesanal de L’Aveyron grelhada, com puré de batata (ui, ui) e jus de carne. Para beber, há muitas possibilidades a copo e em garrafa, mas o melhor é deixar-se ficar nas mãos do staff. A conta, no final, é outra boa surpresa. Come-se e bebe-se (muito!) por 40 euros. Imperdível.
La Glacerie Paris
A cidade tem uma dose considerável de gelatarias de autor. Uma das mais recentes é a de Alain Ducasse, o famoso chef francês. Desgraçadamente, não consegui lá ir e assim perdi as degustações que criou com Matteo Casone, especialista importado de Bolonha. Ao que se diz e escreve, o La Glace Alain Ducasse vai onde os gelados nunca foram, com menus de vanguarda, como o de pistáchio de várias origens (Sicília, Irão…) e vários feitios. Enfim, quem não tem Ducasse, caça com David Wesmaël, pasteleiro também com muitos pergaminhos (melhor gelateiro de França e melhor pasteleiro do mundo por equipas). A sua La Glacerie fica no olho do furacão de Le Marais e faz juz à fama. Se optar pelo pistáchio, pela baunilha ou pela manga sairá feliz.
Trois Fois Plus de Piment
No extremo oposto da La Glacerie, está este micro-restaurante de noodles chineses, cujo dono, Mr. Cheng, ostenta o prémio de “Melhores Noodles de Paris”, atribuído pela revista Le Fooding. Naturalmente, não são uns noodles quaisquer — e não se deixe enganar pelo ar fofinho e limpinho da decoração, como aconteceu comigo. Tive aqui, aliás, uma experiência muito impressiva de toma-lá-que-é-para-não-te-armares. Sucede que os pratos podem levar picante à escolha do freguês, numa escala de 0 a 5. Já alertado pelo nome do restaurante, decidi escolher o nível 4 para os meus noodles de vaca de Sichuan. A empregada alertou-me: “É muito, muito, picante.” “Eu aguento”, ripostei, galifão. Bem, o resultado foi um espectáculo cómico para a clientela, zombando risonha das minhas lágrimas e trejeitos. Espere muita malagueta e, sobretudo, muita pimenta de Sichuan, combinação que resulta em BDSM culinário sichuanês do melhor — também apelidado de mala, uma sensação que combina dormência e calor na boca. Não deixe também de experimentar os dandan noodles e os dumplings. Mas comece pelo nível 2 ou, vá, pelo 3.
Bistrot Paul Bert
É provável que esta instituição de Paris já não seja o que foi, mas ir ao Paul Bert é um clássico parisiense. Deve-se visitá-lo pelo menos uma vez na vida e eu cumpri a minha quota. Na reserva, não especifiquei que queria ficar no interior, o que me valeu um lugar apertado na esplanada, falhando assim a decoração em madeira da magnífica sala principal, no Verão aberta para a rua. A cozinha é um bastião do bistrô clássico francês. Pode-se começar com um ovo duro com maionese e salada de batata nova e depois passar-se para a língua de vaca ( tenra, forrada com um molho denso do guisado) com puré ou para o clássico tártaro, a acompanhar com batata de dupla fritura. Nas sobremesas, recomenda-se o manjar branco com morangos ou o soufflé com licor Grand Marnier. Preço para dois, com vinho a copo: 80€.
Menkicchi
Paris e Londres serão as duas melhores cidades europeias para comer ramen, como atesta este pequeno espaço da Rue de Saint-Anne. Há mais duas ou três opções semelhantes num raio de 200 metros (como o Nakata e o igualmente aconselhável Narikate, encerrado temporariamente), num quarteirão todo ele dedicado à restauração japonesa, mas bem central. No Menkicchi não há fusões, nem opções até ao infinito. Aqui, aposta-se no ramen tonkotsu, o mais exigente de todos e o mais profundo, este com origem na afamada região japonesa de Kyushu. Para dias de calor, é também o sítio certo para o “hiyashi chuka”, servido frio. Noodles feitos na casa, detalhe em cada camada de sabor e ainda chá verde frio bio ou cerveja Kirin de pressão para acompanhar. Com 15€ faz-se uma festa.
Higuma
Do lado oposto da rua, fica o Higuma. Não se pode sair de Paris sem ir ao Higuma. O Higuma terá sido dos primeiros restaurantes de ramen de Paris e da Europa. Foi também aqui que Francisco Lopes trabalhou antes de fundar o desaparecido restaurante Assuka, em Lisboa. Devo dizer que os ramens precoces de Francisco Lopes (ousou servi-los muito antes de estarem na moda) eram mais sofisticados do que os do Higuma, mas infelizmente já não os temos. O Higuma lembra uma cantina asiática, porventura mais chinesa do que japonesa. À entrada, labaredas de fogo nos woks, a sala preenchida de mesas muito além do estabelecido pelo protocolo Covid. Nas traseiras, a mesma densidade populacional, caixotes desarrumados e um frenesim de empregados altamente rápidos e eficientes. Por 12 euros, come-se um ramen muito saboroso (sem a complexidade do do Menkicchi) e ainda uma dose de dumplings de carne, bem bons.
Machi Machi
Ainda sem sairmos do Quartier Japonais, importa fazer uma pausa para hidratar e adoçar o palato. E não há nada mais guloso para o efeito do que os bubble tea, uma tendência mundial (e portuguesa) trazida da Ásia, a que os parisienses aderiram com afinco. Este Machi Machi, com casas noutras cidades do mundo, como Melbourne, começa por impressionar pelo design limpo e moderno, mas também pelas possibilidades da carta. Há desde os chás simples, produzidos e arrefecidos no momento, até aos com leite e natas, os meus preferidos, todos eles com indicação da origem e qualidade do chá, seja o Tie Kwan Yin Oolong ou o Pekoe Jasmin. Não descarte as opções mais vanguardistas, como o de panna cotta com chá verde, mas não deixe de provar o mais clássico de todos os bubble tea, o de chá preto com pérolas de taro, o inhame dos Açores, ou de tapioca.
Jantchi
Ainda no Quartier Japonais, a única fila que compete com as do ramen é a deste Jantchi. Foi ela que começou por me chamar a atenção para este restaurante. Depois, investiguei e percebi que se tratava de um restaurante coreano popular, económico e muito saboroso — e acabei por lá almoçar. Não é fácil encontrarmos bons restaurantes coreanos na Europa, boa parte são geridos por chineses, pelo que o Jantchi é uma boa oportunidade para quem quiser experimentar a coisa verdadeira. Tem a opção de barbecue coreano, mas também uma lista de pratos tradicionais saídos directamente da cozinha, sejam legumes na chapa ou dumplings coreanos, com os clássicos todos alinhados, do bibimbap ao boulkogi, passando pelo chapchei. Serviço simpatiquíssimo e competente, numa sala alegre e bonita.
Combat
Nestes tempos de Covid e discotecas fechadas, os bares de cocktails são, porventura, dos locais mais sociais de Paris (do mundo?). E em França (no mundo), poucos têm gerado tanto entusiasmo como esta pequena loja situada na rua principal de Belleville, perdida entre lojas chinesas e kebaberias, a que a fundadora gosta de chamar de cocktail bistrot. Atrás do balcão, está a já citada Margot Lecarpentier, ex-advogada em Nova Iorque, autora do livro “Les Bible de Alcools”. Os seus cocktails são todos equilibrados e originais, como se fossem pratos de autor, mas longe da opulência estética do copo de pé alto com guarda-sol servido em speakeasies. O sítio está também impregnado de activismo feminista, só havendo mulheres a gerir e a servir, mas sem qualquer condicionante de género no que à clientela diz respeito
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
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