“A franqueza é a coragem da verdade. É uma vitória constante sobre o medo. A partir do medo de nós mesmos. É um bem, por ser uma forma de autenticidade, de naturalidade, de caráter.” Tristão de Ataíde.
Depois de duas semanas ausente para trabalho (os finais de semestre nas universidades têm destas coisas) e para a preparação do baptizado do Gui (que ocorreu ontem) regresso às teclas do blogue (tenho mesmo muito que escrever ate final de Agosto senão alguns de vocês matam-me ;)), e logo com uma história que inclui o primeiro vinho “100 pontos” do ano!!!
Ao contrário do que o título deste texto possa sugerir, não vos vou falar da primeira narrativa de cariz policial da literatura portuguesa (O mistério da estrada de Sinta), e que marca a estreia literária de Eça de Queirós, em colaboração com o seu grande amigo Ramalho Ortigão. Antes sim, de um autor bem menos consensual e … bem mais atual, Francisco Moita Flores, mais precisamente do seu romance policial “A fúria das vinhas”. Já o li há uns anos e estava à espera do vinho certo para vos falar dele… 😛
Este livro coloca-nos no epicentro da luta contra a filoxera, uma praga que, na segunda metade do século XIX, ia destruindo definitivamente as vinhas do Douro (na verdade, de toda a Europa). Folheando duas ou três páginas, viajamos até às vinhas da Régua e das aldeias adjacentes, onde quase toda a terra era dedicada exclusivamente à produção de vinho. Lá encontramos o Portugal de antigamente, mais rural, onde o presidente da câmara também é barbeiro e o médico faz horas extra como curandeiro.
Por lá, cruzámo-nos com D. Antónia Ferreira, a Ferreirinha, herdeira da alma dos seus antepassados, corajosa e destemida, que declarou uma guerra sem tréguas à maldita praga enquanto protegia as gentes de toda uma região. Com ela surge o excêntrico Vespúcio Ortigão, bacharel em direito, muito culto, que cita frequentemente Teófilo Braga e Voltaire e que possui uma certa queda para a psicologia e para o combate ao crime.
Quando dá-mos conta e após uma noite de tempestade, uma rapariga adolescente aparece morta numa vinha longínqua. O culpado deste crime? A opinião parece ser unânime, um lobo ou qualquer outra fera faminta. Vespúcio questiona este julgamento supérfluo, pois são vários os detalhes que a ele lhe parecem indicadores de um assassinato.
É o conhecimento cientifico que o impede de se agarrar à confortável justificação do mistério nas tão comuns artes de bruxaria, que proliferavam nos tempos de então. Muito menos acredita nos ataques, tão estranhamente selectivos (sempre perpetrados em meninas adolescentes), pretensamente levados a cabo por animais. Algo de mais intrigante teria de estar por detrás daqueles crimes, e estava mesmo…
Enquanto o Vespúcio é embebido na resolução deste mistério, a Ferreirinha presencia outro crime, o das suas vinhas a serem destruídas pela temível praga. A população anda numa caça desalmada aos lobos e às bruxas enquanto se procuram afastar do diabo. As mortes de jovens adolescentes continuam a suceder-se a um ritmo preocupante e os campos ficam pintados de cinzento com a morte das vinhas. Ninguém quer ouvir as teorias cientificas de Vespúcio, apenas a velha Ferreirinha, amiga e alma bondosa que lhe pagou os estudos.
Até que Vespúcio, qual Sherlock Holmes duriense, percebe a raiz do problema e começa a delinear uma estratégia com vista à resolução dos dois crimes (os assassinatos das adolescentes e o assassinato das vinhas pelo famigerado escaralhevo) que, na realidade, não passam apenas de um. Não vos vou contar como acaba esta história apenas vos vou esmiuçar o modo como o problema da filoxera foi resolvido (se me costumam ler já devem conhecer esta parte).
O livro ensina-nos que com perseverança é possível vencermos as dificuldades e o medo, sobretudo o mais complicado, o medo de nós próprios, o medo de não sermos capazes, o medo de não arriscarmos ou o medo de não correspondermos às expectativas. Relativamente ao inseto que quase destruiu no nosso continente um bem que a todos nós é querido, o vinho, esse foi vencido com perseverança e com um porta-enxertos americano.
Surpreendentemente, a filoxera coexiste pacificamente com as videiras americanas e videiras europeias enxertadas em pés americanos. Esse “truque” garantiu a sobrevivência do vinho europeu como o conhecemos hoje, uma vez que a esmagadora maioria dos viticultores ainda o usa. No entanto, esta estratégia é na verdade um paliativo e não uma cura.
Felizmente podemos encontrar algumas exceções por esse mundo fora. Alguns viticultores, apesar da ameaça, voltaram a plantar mudas sem enxertos. A moda pegou e começaram a surgir relatos de que em algumas zonas a filoxera não tinha atacado. Aparece então a expressão «pé-franco», que é o nome que se dá às videiras com raízes próprias.
Os produtores que adotaram o pé-franco acreditam que este expressa melhor tanto o terroir como a própria uva, pois as videiras europeias não só eram (e ainda são) mais frágeis como ainda tinham (e ainda têm) raízes menos profundas, o que leva a cachos e bagos mais pequenos e a vinhos mais densos/robustos e complexos. Para além disso, há ainda o argumento mais subjectivo do porta enxertos não alterar as características organoléticas da uva.
Continue a ler o artigo em No meu Palato.