Dona Bia. No Reino de Bulhão Pato

A experimentar

Crítica de Restaurantes

Dona Bia

Quando ainda estamos a ver o menu, voam travessas de ovas grelhadas com coentros, choquinhos grelhados com coentros, arroz de lingueirão com coentros (maravilhoso), açorda de ovas (com coentros, naturalmente), secretos de porco com alho e coentros, cabeça de garoupa grelhada com alho, coentros e batata a murro.

O aroma do Bulhão Pato está no ar. Alho e mais alho. E, sobretudo, coentros. Coentros por todo o lado. Se, por desgraça, acabassem os coentros no mundo, o Dona Bia perdia metade do seu encanto.

(Digo eu, porque há quem os odeie. Em Portugal, os coentrofóbicos são relativamente raros, mas Portugal é das poucas cozinhas europeias que os usam abundantemente, juntando-se assim a países como o México e a Índia. Pelo contrário, em certas regiões do mundo, estima-se que as pessoas avessas a comerem – ou a cheirarem coentros – cheguem a 20 por cento da população. E não se trata de capricho. A aversão aos coentros resulta de uma condição genética que apreende de forma intensa o aroma a sabonete de um dos seus componentes, a aldeída.)

A coentrada alheia deixa-me a salivar por longos 45 minutos, que foi o tempo que demorou a chegar o primeiro pedido. Uma empregada sorridente justificou a demora “com um problema no bico do fogão”, mas na minha anterior visita o serviço fora no mesmo registo: simpaticamente lento.

É um dom ser-se um empregado de mesa simpaticamente lento. Quando os comensais ficam hipoglicémicos libertam duas hormonas da fúria, cortisol (promove o stress) e adrenalina (promove a libertação do stress). Ou seja, a fome inflama os protestos; e à medida que aumenta a ira do povo – ou mesmo de Harrison Ford, para citar uma das celebridades que já encostaram o cóccix nas cadeiras de madeira do Dona Bia -, a tendência é a simpatia do empregado desvanecer-se.

Ora, não foi o caso da empregada que nos serviu. Ao longo da jornada, manteve-se estoicamente alegre perante a turba rezingona. Aguentou os “não se esqueceu de nós?”, aguentou os “podia trazer pelo menos pão e azeitonas!” (boas, por sinal). E, no fim, entregou a encomenda: sopa de tomate com ovo escalfado e pão frito (servido à parte); saladinha de polvo sápida; secretos de porco na frigideira forrados a alho e coentros (praticamente crus, como deve ser); as clássicas pataniscas da casa, versão bolacha (escassa de gadídeo); e o pregado à Bulhão Pato, prato obrigatório e de grande efeito cénico, com as amêijoas servidas por cima do peixe.

É por isto que as pessoas continuam a voltar. Muitas pessoas. Para se ter uma ideia, passavam cinco minutos da uma da tarde quando cheguei ao restaurante, segunda-feira de fins de Julho, e já algumas mesas iniciavam o segundo turno. É este o tamanho do sucesso do Dona Bia. E não é de agora.

A casa abriu em 1985 e tem uma história curiosa e complexa. A Dona Bia é Maria de Jesus, a proprietária. Segundo contou o jornalista Marco Alves na revista Sábado, Maria de Jesus afastou-se do restaurante em 1988, arrendando-o primeiro a dois sócios e, depois, em 1992, a Paula Morgado, então sua amiga, por cerca de 500€ mensais. Desde então, Maria de Jesus dedicou-se a trabalhar nas limpezas.

Foi Paula Morgado que tornou o Dona Bia naquilo que ele é hoje, um clássico da Comporta, ou melhor, da Torre, ali ao lado. Mas nem tudo terá sido do agrado da senhoria, incluindo um avançado, alegadamente construído sem a autorização da proprietária, em 2017. O caldo entornou-se e daqui nasceu um processo em tribunal.

Enfim, com ou sem litigância, para quem se senta à mesa tudo parece na mesma. Já não vinha ao Dona Bia há quatro anos, mas o essencial está lá. E o essencial são peixes e mariscos frescos e boas arrozadas marinhas.

A terminar, o tendão de Aquiles do Dona Bia: as sobremesas. Veio um doce dulcíssimo com uma mousse fraca no topo; e o chamado doce da casa, por vezes conhecido por serradura, era basicamente leite condensado com bolacha Maria partida atirada lá para dentro – o achincalhamento de um clássico. Poucochinho.

Fora isto, a carta tem muito por onde se escolher, muito mais do que um humano pode comer, ainda que alguns pratos interessantes faltassem. A vitrina de peixe é de qualidade, quase tudo fresco e de mar. E há ainda a secção de mariscos, onde se incluem: massinhas de garoupa e camarão; a célebre canja de garoupa com espinafres e amêijoas; e três esparguetes: um com amêijoas, outro com carabineiros, outro com camarão e amêijoas.

O preço não é barato. Com astúcia, podemos comer bem por 25€, mas se quisermos estar à vontade na proteína e partilhar uma garrafa de Cavalo Maluco (Herdade do Portocarro) facilmente chegamos aos 50€ por cabeça.

Uns acharão muito, outros justo. Uma coisa é certa: Bulhão Pato sairia contente.

EN 261, Torre, Comporta, Grândola, 7570. 265 497 557. Qua-Seg 12.15-16.00, 19.30-22.30.

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