Entrevista a William Wouters
O homem que preside à associação que representa os sommeliers em todo o mundo vive na Bairrada. William Wouters, belga, é um apaixonado por vinhos mas também por comida. Passa os dias de volta do fogão, numa cozinha-escritório no primeiro andar da casa que partilha com a produtora bairradina Filipa Pato e os seus dois filhos. Dali, vêem-se algumas das vinhas que originam os Post Quer…s, uma das garrafas da Pato Wouters, projecto que marca a aliança entre o sommellier e Filipa Pato na produção de “vinhos sem maquilhagem”.
A sua vida profissional está contudo mais ligada à sommellerie. Era isso que o ocupava em Antuérpia, onde nasceu e deteve um dos restaurantes mais concorridos da cidade, e que o ocupa agora, sobretudo desde o final do ano passado, quando foi eleito presidente da Association de la Sommellerie Internationale (ASI).
Ajuda que William venha de uma família de restauradores, já de várias gerações. O que também explica que a sua experiência como chef da selecção de futebol da Bélgica que participou no Mundial do Brasil, em 2014, tenha sido encarada com naturalidade. Poliglota, diz que Portugal é dos países mais interessantes para produzir e beber vinho, mas também para cozinhar. “Os vossos produtos têm todos muito sabor”, concretiza. Só é preciso saber servi-los.
Qual foi a performance de um sommelier que mais o impressionou até hoje?
O trabalho de cada sommelier é diferente em cada restaurante, hotel, wine bar, loja, internet. Acho que a capacidade de se adaptar a diferentes situações de trabalho é importante, assim como a inteligência social e a capacidade de abordar o cliente em diferentes línguas e compreender diferentes culturas. Um sommelier é um verdadeiro marchand de bonheur.
Cada região do mundo tem uma forma diferente de servir o vinho? Os japoneses têm um protocolo diferente dos norte-americanos? Os brasileiros dos italianos e dos franceses? Ou há um código idêntico?
Curiosamente, na Association de la Sommellerie Internationale acabámos de lançar as diretrizes internacionais para ajudar os nossos membros em todo o mundo.
Fala-se muito de comida Michelin, mas pouco de bebida Michelin. De que forma o guia francês tem influenciado o trabalho dos sommeliers?
Desde a sua parceria com a Robert Parker Wine Advocate, a Michelin não se concentra apenas na comida, mas também na qualidade e no serviço das bebidas. Daí o trabalho do sommelier. Nós, como sommeliers, só podemos aplaudir isso como um reconhecimento ainda mais global da nossa profissão.
No passado, havia a ideia de que um restaurante para ter duas ou três estrelas Michelin teria de ter os clássicos vinhos franceses de prestígio. Ainda é assim? O que aconselharia a um restaurante que quisesse vencer no guia Michelin?
Isso é um conto de fadas. As estrelas Michelin são propriedade da Michelin. Se um restaurante tem a intenção de trabalhar para alcançar uma estrela Michelin — ou duas ou mesmo três —, tem de estar atento a isso. Um restaurante mencionado na Michelin pode mostrar o trabalho que fez ao longo dos anos e solicitar um encontro com a Michelin. Nessa altura, deve esclarecer quais são as suas intenções.
Um sommelier pode ter um contributo decisivo na facturação de um restaurante?
Sim. Um sommelier também deve ser um economista. Um bom sommelier melhora a experiência de jantar para o cliente e para o proprietário do restaurante, aumentando o lucro no final do ano. Quem diz restaurante, diz wine bar, loja. Um sommelier não é um luxo, mas uma necessidade.
Até onde deve ir a explicação de um sommelier sobre o vinho que está a servir? Quando é que ele deixa de ser um especialista, útil ao cliente, e passa a ser um enochato? Onde está a fronteira?
Excelente pergunta. Um sommelier tem que ter as competências diplomáticas para sentir até que nível o cliente quer ter o seu apoio, em função do menu que pediu. Um sommelier está constantemente em contato com o cliente e deve ter a capacidade de perceber as suas necessidades naquele momento, naquela hora, naquela ocasião. Ser um bom sommelier é muito mais do que conhecer as legislações vínicas, denominações, castas, vinificações, viticultura. É deixar o cliente satisfeito. Momentos especiais exigem vinhos especiais (não é necessário os mais caros ou os rótulos mais conhecidos). Tudo depende, é preciso ouvir bem o cliente e respeitar a sua decisão. Podemos tentar orientá-lo para melhorar a experiência geral da refeição, mas é o cliente que decide o que quer e quanto quer gastar.
Há muito a imagem do sommelier como alguém muito hirto e formal. Esta imagem está a mudar? Veremos mais sommeliers de t-shirt?
Estamos no século XXI. Hoje, tudo depende de como o sommelier exerce sua profissão. Se for a um wine bar hipster em Antuérpia, Berlim, São Francisco, Nova Iorque, Tóquio, Melbourne, Lisboa, pode facilmente ver um sommelier de ténis, sem problemas. Existem muitos restaurantes com estrelas Michelin no Norte da Europa e nos Estados Unidos onde há sommeliers com roupas da moda. Tudo depende do conceito do restaurante. Se for para a Ásia, poderá ser atendido por grandes profissionais nas tradicionais roupas locais. Nos lugares clássicos, ele pode estar de smoking. Agora, isso não muda o perfil geral do sommelier, o trabalho é o mesmo. Na verdade, voltamos à primeira pergunta. Para ser um bom sommelier é preciso uma inteligência social muito alta.
Li que organizou o Campeonato do Mundo de Sommeliers. Como é que se elege um sommelier campeão do mundo?
Desde logo, temos de ser claros: é uma competição, não uma eleição. São duas coisas totalmente diferentes. Os sommeliers que participam neste tipo de competição são um pouco como os atletas que se preparam para os Jogos Olímpicos. Eles treinam durante anos para atingir o nível necessário para participar na competição. A maioria deles trabalha com uma equipa que ajuda nesse treino. Existem competições nacionais, competições continentais e o objetivo final é chegar à fase ASI Best Sommelier of the World. Aqui os melhores dos melhores competem entre si durante mais de quatro dias, até chegarem à final. Em Antuérpia, na última edição, tivemos 63 candidatos. Dezanove chegaram às semifinais e três à final.
Quanto às provas, são muito versáteis: conhecimento teórico sobre bebidas de todo o mundo, história, geografia, viticultura, vinificação, marketing, técnicas de servir, habilidade de vendas, movimentação de stock e domínio da linguagem (numa das três línguas oficiais reconhecidas pela ASI: francês, inglês ou espanhol).
Qual foi a sua primeira medida como presidente da Association de la Sommellerie Internationale?
Tal como está no programa, estamos a orientar a ASI para a educação e não apenas para a competição. O nosso primeiro bootcamp internacional acontecerá em setembro deste ano em Varsóvia, Polónia. No próximo ano será na Ásia e dentro de dois anos nas Américas. A ideia é alternar de continente e dar à nova geração (leia-se sommeliers jovens e motivados) uma plataforma para se encontrarem e treinarem juntos sob a égide da ASI. Palestrantes de renome internacional e os nossos campeões e titulares de diplomas de ouro da ASI estarão encarregados de dar as masterclasses. As coisas já começaram a mexer e a resposta dos nossos parceiros do setor tem sido extremamente positiva.
E como é que um sommelier se torna chefe da seleção de futebol belga?
Numa outra vida, estudei numa escola de catering na Bélgica e trabalhei em restaurantes com estrelas Michelin na cozinha. Só mais tarde mudei para o serviço. Nascido numa família de restaurateurs já na quinta geração, em Antuérpia, Bélgica, fui criado bilíngue (francês, flamengo) e aprendi outras línguas com facilidade. Falo francês, flamengo, inglês e português fluentemente — e italiano e alemão a nível profissional. Aprendi o meu português por causa da minha relação com a Filipa [Pato], que começou em 2006. Tudo isso me ajudou neste setor, em que a comunicação é super importante. Quando vendi o meu restaurante e wine bar em 2014 [Pazzo, em Antuérpia], porque ia mudar-me para Portugal, fui contactado pela Federação Belga de Futebol a perguntar se tinha interesse em juntar-me a eles. Eles procuravam o perfil de um empresário independente com formação em catering e bons produtos, que entendesse a cultura brasileira e falasse o idioma. Isso acabou por ser muito útil no Campeonato do Mundo do Brasil de 2014. À excepção das seleções portuguesa, brasileira e alemã, a Bélgica foi uma das poucas equipas que não teve problemas com a alimentação. Comprámos tudo localmente e mais uma vez ficou provado como é importante ter uma boa inteligência social.
É verdade que os jogadores de futebol devem comer muita pasta? Fazia-lhes pasta? Da fresca ou da seca?
Eles fazem uma alimentação muito diversificada. A massa é um dos produtos que comem, mas não só. E pode ser seca ou fresca. Não importa, desde que seja bem preparada.
Qual era o prato que fazia mais sucesso entre os jogadores?
Panquecas antes do jogo. Dava-lhes um boost de energia (açúcar) e de boa saúde mental.
Qual é o seu prato tradicional belga favorito? E português?
O meu prato belga preferido são croquetes de camarão, feitos com um camarão típico do Mar do Norte, o camarão cinzento. O meu prato favorito em Portugal são sardinhas grelhadas.
Sei que cozinha também no restaurante privado que tem com a sua mulher, Filipa Pato — e muito bem, ao que dizem. Tem um prato de autor do qual se sinta particularmente orgulhoso?
Menos é mais e, por isso, escolheria o gaspacho de tomate com morango e manjericão. Fica muito bom com um vinho Baga fermentado e envelhecido em ânforas. É preciso que se saiba que, para um chef, cozinhar em Portugal é um luxo. Os vegetais, frutas e ervas têm um sabor excelente.
Gosta mais de cozinhar, de fazer vinho ou de servir vinho?
Gosto de tudo o que tem a ver com la culture de la table. Convívio, vinho, cerveja, boa comida e boa companhia. E de vez em quando também desfruto de um bom charuto.
Que problema encontra mais vezes no serviço de vinhos, em restaurantes portugueses?
A temperatura de serviço do vinho: ou muito fria ou muito quente.
Já lhe aconteceu deixar passar o defeito da chamada rolha. Como se lida com isso?
Regra número um: o cliente tem sempre razão. Quando acontece, muda-se de garrafa, de preferência propondo outro vinho (inteligência social), talvez até um pouco mais barato do que o anterior. A ideia é que o cliente volte.
E, como cliente, alguma vez esteve na situação de identificar o problema rolha e o sommelier discordar consigo? Como se gere uma situação em que sommelier e cliente discordam quanto à rolha?
Como não quero atrapalhar o ambiente à mesa, tentaria ser muito discreto e escolher outro vinho. Não gostaria que os outros convidados se sentissem desconfortáveis por causa disso, durante o resto do jantar.
Tenho amigos que insistem que vinho tinto a 25ºC, e até mais quente, sabe bem. Sempre ouvi dizer que a temperatura mais alta faz realçar as notas do vinho. Se as notas forem boas, porque é que isso é mau?
Sabor e cor não estão em discussão, é deixar passar. A cultura da mesa não é uma ciência. Se quer beber o vinho quente, a decisão é sua, não há problema para mim. A título pessoal, prefiro os meus vinhos refrigerados mas não congelados.
Sempre se achou que o vinho tinto pode e até deve estar abaixo dos 18ºC, ou essa ideia generalizou-se entre os experts sobretudo nos últimos 20 anos?
Vem da Idade Média, quando nos castelos a temperatura era entre 16 e 18 graus (e nas caves, abaixo de oito graus). Quando as pessoas falam em temperatura-ambiente, é isso que querem dizer. De qualquer forma, se queremos um vinho de alta qualidade e estamos dispostos a pagar um certo preço por ele, é melhor aproveitá-lo da melhor maneira possível. Isso significa copos decentes e vinhos arejados — decantados, se necessário — e na temperatura certa. Eu nunca sugeriria beber um vinho mais quente do que 18 graus. No momento em que servimos um vinho vindo da adega ou do Eurocave, a 18 graus, temos de perceber que ele imediatamente vai subir dois graus. Servir o vinho a uma temperatura mais elevada implica que o álcool irá dominar completamente a sensação na boca e irá estragar as suas papilas gustativas. Mas se o cliente quiser o vinho a 25 graus, não vou discutir. Discutir com o cliente é sempre mau.
Falemos agora de copos, outro tema sensível aos sommeliers. Há quem diga que depois de pegarmos num bom copo, fino, limpo, todos os outros parecem jarras de flores. Como é o seu copo ideal? Quantos copos diferentes tem no armário de cozinha?
Tudo depende do orçamento, para começar. Quanto está disposto a gastar com copos? É um purista ou amante de vinhos? Um Fiat leva-o do ponto A ao B, da mesma forma que uma Ferrari. Mas a experiência geral é totalmente diferente. Dito isto, o vidro ideal deve ser um cristal sem chumbo, a forma deve ser elegantemente curva, parecendo uma pequena tigela de base larga em direção a uma forma cónica na parte superior do vidro. Desta forma, permite-se que o aroma do vinho apareça no copo e que as nuances se revelem. Um bom copo proporcionará uma experiência mais agradável.
Quanto custa um bom copo? Até que ponto isso é compatível com a existência de crianças à mesa?
Novamente, tudo depende do orçamento. Pode-se encontrar um copo aceitável por dois euros, mas também se pode gastar 30 euros. Se houvesse filhos à mesa, eu escolheria o estilo Fiat.
Há restaurantes com pretensões que usam uns copos-balões muito grandes, para servir tintos, de forma indiscriminada. Parece que se quer transmitir a ideia de que quanto mais bojudo e largo o copo melhor o vinho. Isto faz sentido?
Isso tem a ver também com a experiência gastronómica. Se for a um hotel-palácio, não espera que o vinho seja servido numa taça de dois euros. Por outro lado, se for ao seu bistrô local isso é mais do que aceitável.
Qual foi a ligação entre comida e vinho que mais o emocionou?
Foram muitas. Já estou a dobrar a esquina para a segunda parte da minha vida. Tive muita sorte de ser capaz de provar muitas coisas e construir um grande banco de dados de experiências de degustação.
Que vinho vai, afinal, mesmo bem com sardinhas assadas? E, já agora, com bacalhau cozido?
As sardinhas ficam maravilhosas com um crocante Arinto de Bucelas ou um simpático Loureiro da região do Vinho Verde ou um mineral Bical / Cercial da Bairrada. Aliás, todos os vinhos com uma acidez picante e um carácter mineral para cortar a gordura das sardinhas. Bacalhau cozido, se fresco, pode ir com brancos mais elaborados e cremosos à base de Viosinho e Rabigato do Douro, um simpático Encruzado do Dão, um mineral profundo Bical da Bairrada ou ainda um fumado Terrantez dos Açores. E porque não um grande Alvarinho da região do Vinho Verde ou um branco de Trás-os-Montes com algumas das suas típicas castas brancas (Bastardo Branco, Poilta, Formosa, Malvasia). Portugal, hoje, tem uma das cenas de vinho mais interessantes do mundo. Está finalmente a abraçar o seu enorme património vitícola e as suas uvas autóctones. Estamos a viver tempos emocionantes.
Disse numa entrevista que Champanhe é uma espécie de Red Bull. Quer explicar melhor?
Champanhe ou um vinho espumante feito com o método tradicional da Bairrada são vinhos que refrescam o paladar, limpam e despertam as papilas gustativas. Dão um boost de boa energia!
Defendeu que os políticos deviam beber mais vinho nos seus encontros. Que vinho serviria num encontro entre Biden e Putin?
Vinho Madeira, por fazer parte da história dos EUA e do mundo livre. Durante a assinatura da Declaração da Independência dos EUA brindou-se com Vinho Madeira. Um ano depois, conta-se que poucos dias antes da assinatura oficial da constituição dos Estados Unidos, em 1787, o pai fundador festejou (de forma bastante ambiciosa) no City Tavern, em Filadélfia. Estavam presentes 55 pessoas, que beberam 54 garrafas de Madeira e muito mais vinho e cerveja. Se Biden partilhasse esta história com Putin, isso seria uma plataforma relaxante para se começar a falar. O vinho é um dos maiores moderadores da história. Jefferson, Napoleão, Churchill e muitos outros ficaram intrigados com o vinho. Trazia uma certa serenidade à mesa que aproximava as pessoas e encontrava soluções. É um produto que aproxima as pessoas por vários motivos: safras, regiões, países, histórias.
Quem foi a pessoa que viu a rodar o vinho no copo com mais estilo?
O ator Louis de Funès, no filme “L’Aile ou la Cuisse”, um clássico do cinema francês. Há uma cena de culto onde ele dá uma descrição completa de um clássico vinho francês de Bordeaux: Château Léoville Las Cases 1953. Pura magia!
E, já agora, porque razão toda a gente usa a palavra sommelier, mesmo em Portugal, quando há o termo “escanção”?
O echanson era um oficial encarregado de servir bebidas a um Rei, Príncipe ou outras pessoas nobres durante a Idade Média e, mesmo antes, na era greco-romana. Ele tinha a importante tarefa de provar primeiro. A corte tinha medo de complôs e intrigas que pudessem envenenar o rei ou alguém da sua corte. O sommelier veio mais tarde e se encarregou não só das bebidas, mas também das louças, das toalhas de mesa, do pão e do bem-estar geral do rei e de sua corte. A partir daí o passo para se tornar sommelier sendo o responsável pelo vinho e pelas caves foi pequeno. Hoje, o nome sommelier é utilizado em todo o mundo para designar o responsável pelas bebidas em restaurantes, bares de vinho, lojas de vinhos, sites online de vinhos e até nas colaborações com a imprensa. O sommelier é a versão moderna de echanson.
Ricardo Dias Felner
Escritor e Jornalista
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