“O ponto é o princípio ou a origem da linha, mas não a sua causa; o instante é o princípio ou a origem da actividade mas não a causa do acto; o ponto de partida é o princípio do movimento, mas não a causa do movimento; as premissas são os princípios do argumento, mas não a sua causa.“ Giordano Bruno.
Como bem sabemos a restauração foi um dos sectores mais atingidos durante esta famigerada pandemia. Primeiro foram os fechos e os confinamentos, depois os elevados encargos financeiros que iriam permitir a reabertura, incluindo a redução da capacidade dos espaços, depois novos fechos e recorrentes confinamentos. E, quando isto melhorar, vai haver a desafiante tarefa de voltar a atrair os comensais para as salas de jantar.
É neste cenário que muitos restaurantes lutam, diariamente, para se manterem “à tona”. Uma das soluções (se calhar a única) que permite proteger os empregos, manter negócios e preservar clientes nestes tempos incertos é o take-away. Esta “receita” não é nova. Quando as cidades surgiram, há cerca de 6 000 anos, o nosso anseio ancestral por comida para levar cresceu tanto até ao ponto de quase se tornar uma forma de arte.
Na antiga Pompeia, existiam centenas de lojas/restaurantes que vendiam comida já pronta para os transeuntes, com as panelas tentadoramente abertas/expostas em pequenos balcões ao longo das principais ruas. A adornar essas refeições existiam frescos coloridos para atrair a clientela, era o Instagram de então. 😉
Também na antiga capital azteca de Tenochtitlan existiam vastos mercados com uma diversidade de refeições take-away que incluíam tamales (uma espécie de massa) de carne, tamales simples, tamales grelhados, tamales de peixe, tamales de frutas, tamales de ovo de peru, tamales de coelho … e para os palatos mais delicados, adivinhem lá o que havia? 😉
Tamales!!! Desta vez feitos com cera de abelha , flores de mel e milho. (Já agora, quem não gostasse de tamales comia o quê? ;)) Hoje em dia, mais da metade da população mundial vive em cidades que têm mais em comum com esses antigos centros urbanos do que aquilo que possam pensar, e tal como então os take-away são um negócio rentável, sobretudo em tempos de confinamento.
Mas será possível compatibilizar este género de serviço com a excelência, identidade e experiências gastronómicas (que vão muito mais além que o “simples” alimentar o corpo) que procuramos num restaurante fine dining? Comecei a encontrar a resposta para esta pergunta, há umas semanas aquando do dia de S. Valentim. Gosto de comemorar esse dia sempre com um pouco de “pompa e circunstância”, mas neste ano as opções para o enriquecer diminuíram bastante.
Após algumas pesquisas deparei-me com o menu take-away do DOP desenhado pelo Chefe Rui Paula. (Para não desrespeitar os confinamentos o DOP é bastante flexível e dinâmico nas entregas, a minha foi na saída da A3 ;)) O menu era assente em produtos frescos e que não perdiam qualidade com o tempo decorrido entre a confecção e a entrega (entradas frias e pratos principais/sobremesas que ficavam no “ponto” com um pequeno aquecimento no micro-ondas).
A terrina de foie-gras, pêra-rocha e café estava deliciosa e fez-me transportar imediatamente para um dos restaurantes do Chefe. A inteligência na escolha dos ingredientes, tipo de confecção, texturas e apresentação, compatíveis não só com o take-away mas também com a identidade de Rui Paula, fez-me querer conhecer o restante menu do DOP, e é sobre ele que vos falo hoje.
O Bife tártaro é entregue numa espécie de sandwich gourmet com uma carne super suculenta e enriquecida com uma emulsão de mostarda e gema de ovo, chalotas, alcaparras, cornichons e pão tramezzino torrado. É super saboroso, fresco e untuoso. Por sua vez, o Queijo Brie com compota de 3 pimentos é alegre e vem com um divertido jogo organoléptico entre doçura, acidez e voluptuosidade.
Gostei imenso dos Ovos rotos. Um prato simples mas carregado de conforto. É descomedido, daqueles pratos que foram criados para celebrar a vida e as melhores pessoas, aquelas que gostam de comer. 😉 A cremosidade do ovo, o amargo adocicado do caldo e o umami dos cogumelos fazem uma combinação surpreendentemente harmoniosa.
A untuosidade e sal do presunto ibérico enriquecem o prato, tornando-o muito cheio, heterogéneo e nada cansativo. Está assente em ingredientes descomplicados mas carregados de sabor e intensidade. No entanto, o meu prato preferido foi o Tamboril com puré de trufa e molho de lagostim. Um prato que nos remete para a riqueza e notas fumadas do tamboril, para a acidez adocicada e aromas terrosos do puré e para a cremosidade marítima e riqueza do molho de lagostim. Delicioso!!! Combinou muito bem com a mineralidade, frescura, acácia-lima, toranja e tosta bem integrada do Rebolar Branco 2017.
A Bochecha de vitela com gnocchis e cogumelos estava bastante rica, intensa, macia e sublimemente condimentada com um toque de caramelização. Tradicional mas com pitadas evidentes de irreverencia e modernidade, de que é exemplo a finesse dos gnocchis de couve, tão delicados quanto prazerosos. Este prato dançou harmoniosamente com a ameixa preta, trufa, pimenta preta, cacau, taninos sedosos e bela acidez do Rebolar Tinto 2016.
Nas sobremesas Crème brûlée de chocolate branco e Tarte de amendoim e caramelo. A primeira é um clássico francês com um toque de petulância dado através da adição do chocolate branco (do qual não sou grande fã, mas que neste crème brûlée resultou muito bem).
É cremoso, suave e doce. No entanto, também é ácido, suntuoso e sedoso. Coberto por uma camada crocante de caramelo (que podem realçar em casa com a ajuda de um maçarico) é difícil conter a gula na altura de quebrar essa “protecção”. A ligeira untuosidade está super balanceada com a frescura do molho de framboesa. É viciante.
Relativamente à segunda sobremesa, esta parecia engrandecer a já vencedora relação entre amendoim e caramelo, digo “parecia” porque a Bia apoderou-se totalmente dela, atribuindo-lhe a classificação de “muitos fixes”, a nota máxima a que qualquer Chefe pode aspirar. Relembro aos mais distraídos que esta “escala Bia” vai de um fixe (cozinha de grande nível) a muitos fixes (uma cozinha única). 😉
Relativamente ao preço, que também é um factor a ter em conta, quer os pratos quer os vinhos Rebolar (exclusivos dos restaurantes de Rui Paula) custam menos de metade daquilo que custariam normalmente no restaurante. Fernando Pessoa, através de Ricardo Reis, ajuda-me a dar a resposta à minha questão inicial, se seria possível compatibilizar o take-away com o fine dining: “Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes.”
E é isso que Rui Paula faz no serviço take-away do DOP. Colocar a excelência, criatividade e memória em cada coisa que faz, e que mais tarde nos chega a casa numa embalagem. Tudo isto com foco no sabor, nas sensações e nas emoções que este género de comida nos deve transmitir.
Esse foco é claramente DOP (denominação de origem protegida) por Rui Paula, quer seja nas salas dos seus requintados restaurantes quer neste serviço que recomendo vivamente. Ele é inseparável dessas coisas … desde o princípio e isso nota-se a cada prato/embalagem.
Destaco ainda e novamente o modo resiliente, dinâmico, comprometido, multifacetado e dedicado (quase abnegado) com que o Chefe tem tentado “fazer frente” aos constrangimentos trazidos pela pandemia, este menu take-away é “apenas” mais uma expressão da sua superação. E como defendia Cervantes, ela é a mãe da boa sorte.
O artigo foi publicado originalmente em No meu Palato.