A Terça Feira Gorda

A experimentar

Sempre gostei da expressão “Terça Feira Gorda”. Sou de uma geração onde tínhamos respeito pelas coisas, onde o desperdício era naturalmente aproveitado, onde a mesa era uma festa, mas as travessas eram escorridas para o prato de cada um.

É o privilégio único de se ter feito parte de uma Família numerosa, onde o conjunto está primeiro e a correcção fraterna sobre quem não quiser partilhar a festa, logo aparece. Por isso, me encantou sempre esta expressão.

Uma coisa gorda era uma coisa boa. Porque era farta, saciava, não provocava a disputa nem a inveja. Dava para todos. E todos se podiam alambazar, despreocupadamente, naquela fartura desmedida.

Era o império da abundância que, por uma vez, entrava em nossas casas e nos libertava daquela contrição e competição diárias.

Terça feira gorda. Só de pronunciar, ficamos com a boca cheia.

A tradição associada à cultura judaica cristã é significativamente marcada pela mesa. A mesa era o local sagrado de reunião da família. E os excessos e renúncias que a ordem religiosa permitia ou exigia aos seus fiéis, tinham inexoravelmente que passar pela mesa.

Também a tradição da terça-feira gorda era marcada pela mesa. Como o momento de despedida de todos os excessos. Julgo que sabem que a etimologia da palavra Carnaval tem a ver com o adeus à carne. A forma que era encontrada de, à semelhança de Jesus, nos recolhermos num período de introspecção e regeneração da Quaresma, era a da renúncia da carne que aqui simbolizava o prazer e a abundância.

Os próprios excessos do Carnaval e das suas folias são a consagração do anonimato ou da permissão excepcional do excesso. O anonimato é simbolizado na máscara que permite a folia e o desregramento completos. Mas feitos de uma vez só, em despedida, para um período solene e sincero de recolhimento e de regeneração.

É  a mágica dança entre o pecado e o perdão…

Mas regressemos à terça-feira gorda e às suas tradições. Sou Minhoto, com todo o orgulho. E no Minho, onde a gastronomia se leva muito a sério, a terça-feira gorda tem uma tradição robusta muito ligada à economia rural. No Natal e no início do ano, quando apertavam os rigores do frio, matava-se o porco que, depois de sangrado e desmanchado, ia em salga para as arcas de madeira velha e seca. Um dos mais esperados momentos de voltar àquela verdadeira arca do tesouro era o da terça-feira gorda. Para o sarrabulho, pois claro, ou em minha casa, para as papas e para o cozido.

As “Papas do Enxido” (o nome da casa) são um segredo culinário raríssimo que a Família praticante não está autorizada a divulgar. Umas dicas, ainda vá, mas os segredos mesmo,…nunca!

Se o sangue é seco ou liquido? qual o tipo de pão? qual o ponto de cozedura das carnes (?) – a textura, claro! qual o segredo de uma delas com nome impronunciável ?…

Enfim …, cala-te boca!

Para só te abrires sôfrega e voraz quando as ditas aparecerem naquele ponto de  grossa emulsão do pão e do sangue, dos cominhos e dos bocados de carne e de tutano arrancados dos ossos mais pequenos do porcino.

Que beleza as Papas da minha querida Mãe que faria, exactamente no dia de hoje, uns radiosos 88 anos.

E depois vinha o cozido, com todos os recônditos que só o porco tem para dar, e com a couve e a penca abençoadas, a batata de semente e os enchidos, postos no fumo desde o Natal. E o arroz de alguidar feito na água das carnes e depois de besuntado e decorado com generosas rodelas de salpicão levado ao forno para secar e ganhar aquela crosta que lhe reserva os sucos interiores, num prato de mais do excelsa sapidez!

Que maravilha! Que dez a zero aos “mardis gras” da vida, feitos gentilmente de panquecas, king cake e outras “delicatesses”, já que não posso dizer mariquices!

Hoje, julgo que as únicas máscaras serão as da pandemia.

Mas a terça-feira gorda lá estará, posta na mesa em toda a sua suculência e sabedoria.


António Souza Cardoso
AGAVI

 

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