Da terra transmontana para o mundo, Rui Paula trilhou um caminho suado para alcançar o estrelato. E conseguiu. Poucos seriam capazes deste percurso resiliente feito a compasso de projetos tão sólidos quanto diversos. Mas o homem com olhar de menino sabia o que queria. Naquele que seria o ano da sua vida, uma pandemia virou o mundo do avesso. Em tempo de Natal, um regresso simbólico à essência.
Lembro-me como se fosse hoje. Estava em reportagem no Douro e no alinhamento do dia havia um restaurante recente para descobrir. Chamava-se DOC, ficava num lugar com uma vista deslumbrante e eu pouco mais sabia sobre o dono e cozinheiro que nos recebia para além do seu nome. Numa altura em que a cozinha molecular começava a bombar por aqui, era um regalo saborear a cozinha tradicional portuguesa numa região idílica, a par da presença consistente de Rui Paula, já nessa altura um comunicador nato, mas ainda pouco conhecido.
Já não me lembro propriamente do que comi, apesar de tudo ter muito sabor e ser representativo da boa cozinha nacional, mas não esqueço, sobretudo, a garra daquele homem. Intuí que ele iria longe. Mas, sinceramente, nunca me passou pela cabeça que, passadas quase duas décadas desse almoço no Douro, aquele cozinheiro que me contava o que acabava de aprender rapidamente junto de Miguel Castro Silva, chegasse a arrecadar duas estrelas Michelin. Mas é isso mesmo que valorizo no seu percurso. A tarimba, o desejo de aprender, a curiosidade e inteligência de derrubar obstáculos e tornar-se quase imparável.
No início deste ano, Rui Paula havia conquistado o mundo. Este seria o ano da sua vida. Estava num dos picos da sua carreira e acabava de cumprir um sonho. As duas estrelas Michelin que arrecadou com o restaurante da Casa de Chá da Boa Nova não chegaram a cintilar na plenitude por causa da inesperada pandemia que virou tudo do avesso. Mas nem por isso, hoje, o mesmo brilho dos seus olhos esmorece, apesar do “chip” ser outro. É essa resiliência que se torna numa das suas facetas mais sedutoras. Para ele, desistir não faz parte do seu vocabulário.
Hoje, com a arrebatadora imagem do Atlântico encapelado como cenário quase dramático de um dos mais belos espaços de restauração do mundo, a Casa de Chá da Boa Nova, Rui Paula cavaqueia connosco num dia cinzento. Concorda que tudo mudou. A começar por si mesmo. Mas apesar da tristeza, sente-se que a perseverança é a mesma.
Basta observar o seu olhar coruscante e irrequieto de gaiato para descortinar que ainda há energia e imaginação para dar e vender, mesmo nos tempos em que tudo está periclitante e ficamos sem tapete.
Apesar de tudo isso, é o genoma da infância no Douro, que palmilhou desde pequeno, que lhe confere solidez. Mesmo que para desbravar terreno tenha corrido seca e Meca. Do recanto em Alijó para o Celler Can Roca foi a distância de um sonho feito realidade, onde aprender e descobrir se tornou o seu motor. Nesse percurso burilado a pulso e força de vontade criou três restaurantes que são emblemas no cenário da gastronomia nacional. É obra. Do DOC, onde o sonho começou, seguiu-se um palácio no centro do Porto, o DOP, mas Rui Paula queria mais. A Boa Nova foi um salto arriscado, mas deu-lhe a consagração que tanto ambicionava. Três espaços para diferentes experiências gastronómicas mas sempre alicerçados de forma sólida. Esteve quase para embarcar num quarto projeto mas a tempo recuou. Determinação não lhe falta. Teve muitas outras ocupações mirabolantes. Isso deu-lhe estofo e abertura mental para aprender sem preconceitos ou balizas. A lua era o seu limite. Por isso, uma terceira estrela parecia ser a meta seguinte.
Continue a ler o artigo em Revista de Vinhos.