Em cozinha há a mão e o fogo. O controlo da mão e o domínio do fogo.
A mão tem uma tradução directa para uma expressão antiga associada ao tempero, mas é muito mais. É a ligação entre o intelecto e a matéria sobre a influência da experiência e da prática. A mão é o gesto, o savoir-faire. A mão não mente nem esconde, mas impõe cuidado e reconhecimento.
O fogo é o meio da criação, essência da excelência, é irmão do tempo. Numa cozinha comprometida, a sua compreensão pode ser disfarçada, mas a negligência grita para quem a conseguir escutar. O som do fogo, a sua fala. O tom do fogo, tanto água como brasa, gentil ou forte, discreto ou dominante, mas sempre incontornável.
O cozinheiro controla a mão ensinando-lhe sentimentos próprios da vida, o afecto carinhoso, o aperto bruto, ora rápido ora lento. A mão cria o cozinheiro pela exigência de devoção constante, esquecendo as lições quando é esquecida, magoando quando é maltratada. A mão que também mima quando o cozinheiro volta e procura na faca, na massa ou no toque, o amor que outrora teve. Aí a mão brilha, mostrando que não esqueceu tudo, que era só um amuo, amando de volta. A mão alegre é livre.
O fogo é ímpeto e precisa de compromisso. É uma conversa longa, nunca é inteiramente nosso. É o toque do incerto criando o irrepetível. A marca do fogo é permanente num mundo onde todo o erro se faz pagar. Quando o permite, o fogo é tão imagem do cozinheiro quanto a mão. É o espelho da abordagem, da entrega. O fogo, o elemento, exige respeito.
Na cozinha a mão é o sabor e o tempero, mas também é destreza e elegância, a familiaridade do gesto, a confiança dos amigos. Se a mão é interna, o fogo é externo. A mão é nossa, o fogo é de Outro. A mão, sem fogo, é solidão. O fogo, sem mão, destruição.
Quando o cozinheiro junta a mão e o fogo surge um novo sentimento, um ritmo único, uma dança. Uma dança com várias variações: os grelhadores de Matosinhos ou os assadores do Algarve. Os homens das castanhas e das farturas. As cozinheiras das iscas e dos pastéis de bacalhau. Os sushiman e os pizzaiolos. Padeiros e pasteleiros. Mil pessoas diferentes, milhões de gestos, a mesma imagem por trás de todas elas, a receita para uma cozinha de verdade. O controlo da mão e o domínio do fogo.
Pedro Lencastre Monteiro
Cozinheiro
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