A arte de dar jantares, aliás como quase todas as formas de arte, está em crise. Foi nesse sentido que, num destes fins de semana de confinamento, contrariando todas as normas emitidas pela DGS relativas à pandemia, à figadeira e à obesidade mórbida, organizei um pequeno colóquio alimentar. Tinha um só objetivo: reacender a paixão por esta arte que a minha geração faz questão de esquecer.
Assim, cedi a casa, aspirada, arejada e impecavelmente arrumada. A mesa tinha sido preparada como deve ser: com naperons, com duas velas acesas, com talheres simetricamente dispostos (e até os de sobremesa, escassos em jantares de universitários) e com um centro de mesa banal, mas agradavelmente florido – a fim ao cabo, uma mesa que demonstrava o respeito que tinha por aqueles que havia convidado. Ainda, e porque não tolero silêncios, as conversas foram temperadas ao som da nobre harmonia de Getz e Charlie Bird, com breves incursões aos originais de João Gilberto.
A cozinhar, como tinha sido combinado, um amigo (António Lobo Xavier), jovem talentoso e aprendiz da arte da culinária, que nos brindou com entradas, prato principal e sobremesa. Nesse sentido, começamos com um tártaro de salmão, direto da lota para o prato, com um corte sublime e magistralmente condimentado, seguido de um tataki do mesmo que me levou à promessa (em boa voz) de uma ida à grande nação do sol nascente. Os dois aperitivos poderiam facilmente ser considerados bons, digno de restaurante mediano, se não fosse uma maionese de alcaparras que se podia comer por ela própria, elevando este momento ao nível de um Robuchon em construção. O mestre dos bicos de gás, de paladar treinado, rapidamente se apressou a dirigir as ordens entre as entradas e os fortes tragos de um Planalto que fazia a conexão divinal entre esses pratos iniciais.
Aliás, este artigo, para além de ode à “arte de bem receber”, é uma ode ao nosso chefe que, de modo inteligente e bastante persuasivo, levou os nossos paladares a uma viagem dantesca rumo ao empíreo. Este nosso Vatel, quando julgávamos não ser possível subir nas esferas celestes, abriu abruptamente um Vinha Grande 2018, fazendo estalar a rolha ao som das batidas frenética de Milton Banana, presenteando a mesa com rosbife, de molho delicado, acompanhado por um puré de couve flor, suavizado com uma dose não recomendável para cardíacos de manteiga. E comemos, e bebemos, e voltamos a comer e voltamos a beber. Com as histórias de sempre, com os amigos de sempre, com as gargalhadas de sempre, mas com o acompanhamento que nunca havíamos experimentado, ou melhor, que nunca haveríamos produzido: uma receção memorável.
O fartote consumido levou-me, como mestre de sala, que recomendasse que fossemos diretamente para os digestivos. Logo, deixando de lado as vodkas rascas e os gins muitíssimo mal preparados, começamos por beber um Pisco, com um toque de hortelã e de voluptuosidade vazia que as claras de ovo lhe conferem, aconchegando o jantar e permitindo que o doce da bebida nos tirasse a “boca de pobre”, dispensando, assim, a sobremesa. Se a bebida era repimpa, a conversa ainda mais. Sim, a fluidez da conversa era diretamente proporcional à fluidez de Pisco nas nossas gargantas.
Por fim, e quando a exuberância de sabores não nos permitia ir mais além, terminamos o jantar ao gosto de um Tom Collins, hidratando as bocas secas de palratório com a sua água tónica, enquanto o piano Bill Evans chorava e os nossos olhos se fechavam, tanto de cansaço como de satisfação. Aí, chegados a este ponto, era hora de chamar os Ubers ou Táxis, recolhendo-se cada um na sua casa, profilaticamente desejosos de desrespeitar as normas da DGS outra vez e desta forma.
Já não se fazem estes jantares e já não se recebe assim – o que é uma pena. Rapidamente se arreigam desculpas para que os mesmos não decorram nestes trâmites. Aliás, atiram-se argumentos, principalmente de ordem monetária – apesar de ser perfeitamente acessível (este jantar) a uma mesada de dois dígitos – retirando (eu) a conclusão que é tudo uma questão de vontade e, neste caso, da falta dela. Vou dando estes contributos, mantendo o gosto pelo requinte como tradição pessoal, para que nunca caía no cúmulo de servir um jantar em latas e de enlatados, num balcão da cozinha, a quem gosto suficientemente ao ponto de abrir as portas de minha casa, mostrando a quem me acompanha nestas incursões que ainda há alguém que preserve a arte de dar jantares.
José Maria Couceiro da Costa
Estudante
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