“Comida é tudo o que somos. É uma extensão do sentimento nacionalista e étnico, da nossa história pessoal, da nossa província, da nossa região, na nossa tribo, da nossa avó. Ela é inseparável dessas coisas … desde o princípio.” Anthony Bourdain
Já se questionaram sobre aquilo que o que comem pode dizer acerca das vossas origens? Já se perguntaram porque é que as pessoas de diferentes partes do mundo comem diferentes tipos de alimentos? Qual a razão de alguns ingredientes, pratos ou tradições culinárias serem tão importantes para a nossa cultura? A resposta para todas estas perguntas está assente no facto da comida, da nossa cultura e da nossa identidade enquanto povo, estarem relacionadas de um modo surpreendentemente próximo.
Existem muitas coisas que nos distinguem do restante mundo animal, desde o modo como a nossa mente nos permitiu desenvolver a civilização, até às tecnologias incríveis que actualmente temos ao nosso dispor, passando pela maneira como moldamos a aparência do nosso planeta, segundo as nossas necessidades. Com todos estes avanços, por vezes, esquecemos-nos que nossa singularidade no reino animal remonta a tempos ainda mais antigos, às raízes da nossa existência e a uma das nossas necessidades mais básicas: comer.
A relação, quase umbilical, que fomos desenvolvendo com a comida é verdadeiramente especial, desde os nossos antepassados ancestrais que cozinharam pela primeira vez, até os dias de hoje, onde concebemos essa comida a um nível molecular. Mais importante que esta evolução tecnológica que fomos tendo na maneira como preparamos os alimentos é a circunstância de sermos os únicos a manter uma ligação emocional com aquilo que comemos (não sejam malandros, continuamos a falar de gastronomia (;)). No restante reino animal, a comida é, geral e simplesmente, uma forma de dar energia ao corpo, comendo-se por instinto.
De modo oposto, nós, a raça humana, vemos a comida de uma perspectiva muito mais que meramente nutritiva, uma vez que a comida surge primeiro a um nível emocional, e apenas mais tarde, a um nível instintivo. Outro pormaior é que não usamos a comida apenas para satisfazer nossas próprias necessidades, mas também para mostrar uma ligação afectiva com os outros. Desde o primeiro leite da nossa mãe até à sopa caseira da nossa avó, a comida é uma forma de nos conectarmos e mostrarmos amor pelos outros. Trata-se de preparar, criar, descobrir, explorar, inventar e mudar a nossa comida e os nossos horizontes alimentares. Trata-se de amar.
Sabemos que o nosso namoro está a ficar sério quando o nosso par nos prepara uma refeição caseira, ou quando temos sorte, nos convida para jantar num estrela Michelin. 😉 Quando um vizinho está doente levamos-lhe uma sopa que o reconforte. Quando um colega fica sem emprego, resolvemos o problema com um gelado no parque. Quando o nosso melhor amigo precisa de desabafar, bora comer uma francesinha. Há algo para celebrar? Há que fazer um bolo. Preparar e partilhar a comida com aqueles que amamos acaba por fortalecer as nossas relações.
A uma escala maior, a comida é uma parte importante da cultura que nos une. A cozinha tradicional é transmitida de geração em geração, funcionando como expressão da nossa identidade cultural. É por isso que os imigrantes trazem consigo a comida dos seus países de origem, é a forma que têm de preservar a sua cultura quando se mudam para novos lugares. Poder manter essa alimentação cultural em algumas refeições familiares é um símbolo de orgulho pela sua etnia e uma forma muito bonita (e saborosa) de lidar com a saudade. Muitos deles chegam mesmo a abrir os seus próprios restaurantes tradicionais.
E é assim que cada povo mantém a sua história, o seu estilo de vida, os seus valores, as suas crenças únicas e as suas tradições, através daquilo que come. E é também por isso que acho genial a caracterização que Bourdain fez da comida, assumindo-a como uma extensão do sentimento nacionalista e étnico, da nossa história pessoal, da nossa província, da nossa região, da nossa tribo, da nossa avó. Tornando a comida inseparável de todas essas coisas … desde o princípio.
Neste contexto gastronómico, já com uma história carregada de capítulos mastigados, é muito importante que a criatividade, inovação, nova roupagem e técnicas contemporâneas promovidas pelos Chefes de cozinha de hoje em dia, não manche todo este legado histórico-cultural. Há casos, poucos, em que esta nova brisa de criatividade/modernidade, ao contrário de beliscar a tradição, ainda a glorifica. Um desses casos é o Chefe Rui Paula.
A última vez que tive a oportunidade de experimentar a sua cozinha moderna, inovadora, criativa, mas ao mesmo tempo, com história, tradição e memória foi num almoço do DOC (Folgosa – Armamar), que celebrou o final da nossa roadtrip na EN2. O restaurante fica alojado num cais sobre rio Douro, ao lado da lindissima EN222 entre a Régua e o Pinhão.
Exibe uma cozinha que se materializa numa janela degustativa com uma vista arrebatadora para o Douro, para os seus socalcos e para as suas vinhas, estando assente no sabor, nas emoções e nas sensações. O almoço começou com as boas vindas do Chefe, um Falso Hot-Dog de cenoura fumada e um Salmão com nata azeda. O primeiro quase que a querer enganar os nossos sentidos e munido de uma untuosidade fumada deliciosa e o segundo com uma acidez salina que teve o condão de despertar o palato.
Seguiu-se a Nossa sopa de peixe e os frutos do mar que possuía um aroma elegante, com a brisa marítima de cada um dos peixes muito bem conjugada com as pitadas de sabor e ligeira untuosidade do caldo. O “cheira só isto nunu” exclamado pela Bia, mostra que até ela ficou encantada com esta sopa.
O Arroz caldoso de peixe e lavagante com um sabor inspirador a mar, único e inconfundível, combinava diferentes influências, sabores e aromas. O peixe, o marisco e o arroz, cozinhados no ponto e como manda a tradição, absorveram os sabores das cebolas, do alho, do pimento, da salsa e das especiarias dando origem a um aroma muito intenso, rico e heterógeniamente equilibrado. Adorei a textura do camarão, a frescura do malandrinho e a untuosidade do arroz .. A harmonia voluptuosamente construída é diga de realce.
No entanto, o meu prato favorito foi o Lombinho de vitela Maronesa, aipo e cogumelos. Estava avassaladoramente refinado e saboroso, com uma imensidão de texturas e sabores complementares. A carne tinha um sabor pleno e intenso, derretendo-se na boca e solidificando na memória.
O gosto assertivo e anisado do aipo, o sabor delicado dos cogumelos e a redução de vinho enobreceram um prato que foi mais uma lição de equilíbrio, de aromas, de texturas, de sabores e de cores. Para a sobremesa: Crepe crocante de leite creme e frutas exóticas.
A textura crocante de massa filo combinou na perfeição com a cremosidade leite creme, onde a doçura destes foi balanceada com a frescura das frutas exóticas (pitaia, ananás, framboesa, fisális, maracujá, papaia, groselha e melão) e a acidez do sorbet de citrinos. As amêndoas laminadas crocantes e ligeiramente salgadas acrescentam uma camada extra de sabor e textura. Uma sobremesa rica, inteligente e deliciosa.
Tendo já experimentado todos os restaurantes do Chefe Rui Paula, por mais que uma vez, acredito que DOC é a base do sucesso de todos os outros, não só pela qualidade, mas também pela atmosfera de experimentação que ali se vive. O menu, enraizado no nosso cânone gastronómico é sempre inteligente, criativo e engenhoso, culminado num empratamento requintado mas sem se tornar exagerado. Os ingredientes são locais, mas na maior parte das vezes, trabalhados com técnicas e conceitos da nouvelle cuisine.
A relação da gastronomia com os vinhos é muito bem conseguida, quer na carta de vinhos (regional, diversificada e coerente) e harmonizações sugeridas, quer na exemplaridade com que os mesmos são servidos (modo, temperatura e quantidade). Destaque ainda para o staff, muito acolhedor, atencioso e dedicado, num serviço que combina requinte e profissionalismo com proximidade, afectividade e alguma descontracção.
O resultado é um ambiente relaxado e empático, quase familiar. Por tudo isto, o DOC é um restaurante onde a tradição é servida elegantemente, no presente, mas com os olhos postos no amanhã, sempre focado no sabor, nas sensações e nas emoções que a comida nos transmite. Ele é inseparável dessas coisas … desde o princípio e isso nota-se a cada prato.