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“Eu Quero a Terceira Estrela”

A experimentar

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Na segunda parte da entrevista a Rui Paula, falou-se da comida lá de casa, do que é ser uma vedeta e de pataniscas de sonho. Pelo meio, ainda houve direito a uma lição sobre o que fazer quando há crianças de um lado para o outro na sala.

Entrevista realizada pelos alunos do curso O Homem Que Comia Tudo No Porto: Ana Chaves, António Roquette, Joana Sousa, Luísa Montenegro, Maria Eduarda, Mariana Ribeiro, Filipe Martins, João Lima Reis, Rui Pereira, Teresa Castro Viana.

O que é que gosta de cozinhar na intimidade do lar?

Nada. [Risos] A única coisa de que gosto é de comida pré-feita. Imagine: corto um bocado de salmão fumado, um queijo fresco. Como queijo Limiano com umas malgas de marmelada caseira que a minha mãe me dá. Agora, como mais proteínas do que hidratos.

E onde vai comer fora?

Como peixe em Matosinhos. Gosto muito de ir ao [restaurante] São Valentim. Sou capaz de comer de entrada umas sardinhas e umas lulas e depois um peixe fresco. Gosto de carne, embora menos. Marisco, gosto muito. Vou à Marisqueira Antiga, ao Miguel. E depois vou a restaurantes para ver o que é que andam a fazer. Dizem-me: “Anda com muita gente”. E eu vou lá. Até me rio. “Já percebi. Por causa da comida não é de certeza.”

É porquê?

Sei lá. Para ser visto. Mas eu não critico. Fazem isso bem.

Sente a pressão de estar nos seus três restaurantes, sobretudo na Casa de Chá da Boa Nova. As pessoas que pagam 150 euros querem vê-lo na sala? 

Eu estou sempre nos meus restaurantes. Se não estou no DOP, estou na Boa Nova ou no Douro. E se não estiver é porque estou fora. Ao início era um problema maior. Ainda há pessoas que fazem a reserva só se eu estiver. Se estiver, apareço sempre às pessoas. Venho às mesas todas perguntar se está bom. Dou a cara. Não tenho medo de dar a cara. Está mal, está mal. Digam-me. Agora, quando vamos a uma mesa, temos de ir a todas. Já aconteceu não ir a uma mesa ou outra e as pessoas escreverem no TripAdvisor ou mandarem um email a dizer que “o chef foi às mesas todas menos à nossa”.

Isso é justo, não?

Mais do que justo. Não interessa se o Ronaldo está ali. Se o Ronaldo estiver tem de levar igual aos outros. Isso faz a casa e o respeito pelo chef.

Como é que se lida com uma crítica às dez e meia da noite, no final do serviço?

É terrível. Seja por causa da sala ou da cozinha, estraga a noite toda. Mas temos de estar preparados para isso. E umas críticas são válidas, outras não. A maior parte não são.

O que é uma crítica não válida?

É uma crítica de alguém que não sabe o que está a dizer. Mas há absurdos que é preciso resolver. Há dias, andava lá uma criança, na Boa Nova, de um lado para o outro. É chato. O restaurante estava cheio. A criança não comeu nada.  A mãe perguntou se podia levar a comida. Resposta [do empregado]: “Não pode por causa da Covid” e não sei quê. E eu fui à mesa. E disse: “Vai levar a comida, sim”. Porque é que não pode levar a comida? Eu até tenho uns sacos a dizer “Rui Paula”, todos bonitos. Meti lá a marmita. Também já aconteceu pedirem 12 momentos, mas não quererem sobremesas. Se não quer, não quer. Damos-lhe outra coisa. Foram duas coisas em que eu interagi, mas se não tivesse visto tinham ido falar mal do restaurante. Há sempre coisas que aparecem e nós temos de estar preparados.

E o que são críticas válidas? 

“Olhe, isto está um bocado puxado”. Ou outra, que já aprendi: “Este peixe aqui eu trabalhava de outra maneira”. E não são cozinheiros. E uma espinha é chato. Às vezes vai. Ficamos todos doentes quando acontece. Mas fui a um restaurante com três estrelas Michelin e encontrei cinco espinhas no prato. E a gente pô-las todas para a pessoa vir levantar. E nunca pediram desculpa. Acho muito feio.

Onde era?

Não vou dizer. Não era português… Vou dizer! Aponiente [restaurante de Ángel León, no Porto de Santa Maria, em Cádiz]. Cinco espinhas. E ganhou o prémio de sustentabilidade.

Porque não deitava as espinhas fora, está certo [Risos].

Já agora vou dizer uma coisa que eu também não acho bem. Ganhou o prémio de sustentabilidade e tem lá um prato que é moreia. Vem uma moreia inteira para a mesa. Partem como um leitão, só se come a pele. Foi o prato que mais me marcou. Mas para onde vai o resto do peixe? Sustentabilidade…

Considera-se um bom team leader?

Sou, muito bom. [Risos] Há coisas em que eu sei que sou bom. Mas sou mesmo. Nasci com isto.

O que é um chef vedeta? É o que anda de Aston Martin?

Não. Há chefes dos correios, da polícia. Há vários chefes. Este é o de cozinha. Nunca nos podemos achar vedetas. Quem tem de achar isso são os outros. Depois, a vedeta vem da carreira, dos princípios que defende e do que fez pelo país. Eu já fiz pelo meu país. Então pelo Douro, fiz muita coisa. Muita coisa. Como por Matosinhos estou a fazer muita coisa. E isso tem de ser reconhecido. E é. Mas não é por isso que digo: sou o maior. Sou um bom team leader, isso sou. Sou tão bom que tenho pessoas que trabalham comigo há anos. Também sou um bom comunicador. Se calhar, sou melhor comunicador do que cozinheiro.

Como é um dia normal? 

Acordo às 8,30 e tomo um café e um pão com pouca manteiga e uma fatia de fiambre. E depois às 11.30 já estou a almoçar peixe. Em todos os nossos restaurantes o almoço para o staff é peixe. Pode ser no DOP, no DOC, na Boa Nova. É aleatório. Ultimamente, nem aviso quando venho. Apareço. Respeito é o horário da refeição do pessoal. Se quiser vir aqui à noite, sei que às 17.45 é hora de comer.

E não escolhe de acordo com o prato desse dia? 

Às vezes também faço isso [Risos]. E atenção que, ultimamente, nos três restaurantes come-se muito bem. Adoptei aqui um estratagema que resulta: pu-los a cozinhar à vez. Assim, aprendem a cozinha de base. Hoje, na Boa Nova foi arroz de tomate com fanecas fritas. Estavam uma delícia. Não há nenhum restaurante tradicional que fizesse aquilo. Ou, se há, há poucos. Depois, à noite, é sempre carne.

E não dorme uma sestinha? 

Ultimamente, o organismo anda-me a pedir isso. Já não ando a gostar.

E o dia acaba a que horas? 

Trabalhamos mais ou menos 14 horas por dia. Depende também se os clientes ficam muito tempo. Eu deixo-os estar. Na Boa Nova, há uns tempos estava lá um casal e ele estava a cantar-lhe a cantiga do bandido. E ela não estava muito afim. E ele: mais uma garrafa de champanhe. Eu fui-me embora e disse: pelo menos está aí, mas está a gastar. Ao outro dia: “Então a que horas é que ele saiu?” “Três menos um quarto.” E eu perguntei: “Então, mas conseguiu?” “Não, chef. Ela saiu e não sei quê”. E eu: “Se ele não conseguiu aqui, tem de mudar de rapariga. Com aquela não vai a lado nenhum”.

Está a pensar na terceira estrela?

Estou. Não tenho problema em dizer. Trabalho bem a segunda, para conseguirmos a terceira. Em tudo o que me meto é para atingir o fim. Não sou desses que dizem: “Ai, eu não…”. Eu quero a terceira estrela. Agora, trabalho bem a segunda, para manter a segunda.

Qual é a diferença entre um restaurante com duas estrelas e um três estrelas? Qual é o salto?

Para a terceira, tem de haver um investimento de coisas fora da caixa. Imagine que [na Boa Nova] eu consigo que haja um momento em que as pessoas vão ali às rochas, com dignidade. E ali apareça uma coisa no meio das rochas ou algo do género, que está ali a ser cozinhada mas eles não sabem. Ou então, à chegada, antes de entrarem no edifício. É mais por aí. Não estou a brincar. Tínhamos isto pensado, mas depois veio a pandemia. A seguir a isto, a gente vai reflectir.

Que pratos ainda o emocionam?

Tenho vários. Ainda há dias comi umas pataniscas de bacalhau, como a minha avó fazia. A saber a bacalhau, todas crocantes, sem pinga de óleo, no restaurante António, em Leça da Palmeira. Acabadinhas de fazer, quentinhas, feitas com mimo. Fiquei emocionado. Disse cá para mim: “Aprende, toma lá”. No outro dia, fiz pataniscas em casa, não ficaram tão boas. E quem me der um arroz de polvo seco, com filetes e uma couve guisada também me emociona.

[Toca o telefone. Rui Paula antecipa a origem e o conteúdo da chamada. “Isto é da Boa Nova a perguntarem onde vou jantar”. Põe em alta voz, toda a gente na sala a ouvir. Atende. Do outro lado, só a pergunta, sem cumprimento nem introdução: “Janta cá?”. “Não, Emanuel, vou jantar no DOP”, atira. Depois, vira-se para os entrevistadores: “Parece um relógio Suiço. É só para verem.”]

O artigo foi publicado originalmente em ohomemquecomiatudo.com.

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