Legumes, queijo, azeite, vinho – fomos descobrir o que já se produz na primeira bio-região de Portugal. O festival Arrebita foi a nossa porta de entrada no caminho sustentável que Idanha quer seguir.
Começamos a descer em direcção aos moinhos de rodízio da aldeia de Penha Garcia, na Beira Baixa, pelo meio das escarpas do vale do rio Pônsul, por entre fósseis com 480 milhões de anos que guardaram animais marinhos há muito extintos, e quem primeiro encontramos é o senhor Domingos, o guardião deste sítio único, e o seu cozido de grão.
Depois de uma primeira edição em Agosto em Portimão, o festival gastronómico Arrebita Portugal seguiu, no início de Outubro, para a região de Idanha, com o Arrebita Idanha Bio. Quando viram esta paisagem impressionante, Paulo Barata e Ana Músico (Amuse Bouche), os organizadores, decidiram que era ali, junto aos moinhos preservados pelo incansável senhor Domingos, que tudo iria acontecer.
E “tudo” significa dez chefs a cozinhar no meio das pedras, junto ao rio, ao lado de uma cascata. Primeiro o senhor Domingos, claro, mas logo à frente Rui Paula, da Casa de Chá da Boa Nova, com uma feijoada de tripas de bacalhau, um desvio e encontrávamos Marlene Vieira, do Zunzum, com a sua sopa de cação, mais acima o rancho beirão com legumes bio e cogumelos silvestres de Valdir Lubave do Na Mesa do Chef, em Belmonte. E ainda José Júlio Vintém, vindo de Portalegre para cozinhar vitela e batatas no forno comunitário, e vários outros, num percurso que terminava com José Avillez e o seu escabeche de perdiz, junto a uma cascata.
No dia seguinte, mais chefs, desta vez em Idanha-a-Velha, por entre ruínas romanas e muitas, muitas pessoas que vieram para provar a comida feita com produtos biológicos do concelho. Quando decidiu fazer aqui o Arrebita, Armindo Jacinto, o presidente da Câmara de Idanha-a-Nova, sabia o que queria: uma oportunidade para mostrar alguns dos melhores produtos feitos naquela que se apresenta como a primeira bio-região do país, integrada na Rede Internacional de Bio Regiões.
O objectivo? Combater “a percepção negativa da ruralidade”, explica Armindo Jacinto, através de uma ideia mobilizadora: recomeçar. Isto significa seguir uma estratégia de desenvolvimento de uma região muito despovoada, que passa pelos modos de produção biológico e agro-ecológico para a adaptação às alterações climáticas, a preservação da biodiversidade, a prevenção dos incêndios florestais, a qualidade da água e a produção de alimentos saudáveis.
É o Idanha Green Valley e os seus produtos estão aí, nas mãos e nos pratos dos chefs espalhados no meio dos fósseis do fundo do mar ou entre as ruínas deixadas pelos romanos. Fomos conhecer alguns deles.
Hortas da Campina
Muitos dos legumes usados no Arrebita Idanha Bio vieram desta área de pouco mais de um hectare, propriedade de José Robalo e Maria da Conceição – as Hortas da Campina. Vamos visitá-los e imediatamente José Robalo nos convida a ver um local cheio de terra escura e a reparar como, no meio dela, trabalham centenas de pequenas minhocas.
“Isto vai ser o futuro”, exclama, satisfeito. “Já produzimos muita coisa com o húmus líquido que extraímos daqui. Começámos em Fevereiro e o resultado tem sido muito positivo. Vamos aumentar e passar a fazer só com isto.”
Há já algum tempo que o casal tinha vontade de tornar a sua produção integralmente biológica. “O meu filho, quando aí vem”, conta José, “costuma comer tudo cru, apanha alguma coisa e come, e eu pensava que é preciso ter cuidado, porque sempre se punha algum produto para matar uma praga.” Agora, com o húmus das minhocas, deixa de ter essa preocupação. Pesticidas e fertilizantes desaparecem das Hortas da Campina.
E o que aqui cresce está com um ar viçoso e saudável. Percorremos o campo e os cultivos sucedem-se, alguns nas estufas, outros fora. Há ervas aromáticas, muitas, e a seguir alfaces, couves, e todos os legumes que conhecemos bem, mas também várias “novidades”. José e Maria da Conceição gostam de apresentar aos seus clientes coisas novas sempre que podem e por isso procuram sementes diferentes, como o pimento-chocolate, as miniberingelas, o pepino-limão ou as pitayas.
Queijo da Fonte Insonsa
É um queijo feito com leite biológico de cabra, de uma pequena queijaria que tinha fechado, mas que foi recuperada por Anabela Gaspar e pelo marido, o presidente da Câmara de Idanha, Armindo Jacinto, para que não se perca um queijo do qual ambos gostavam muito.
Com a ajuda dos antigos proprietários, Anabela foi aprendendo os segredos deste queijo (que já se vende em lojas de produtos biológicos em vários pontos do país), mas introduziu-lhe uma alteração: usa exclusivamente leite biológico. Não foi fácil, confessa, encontrar produtores locais que o fornecessem, mas agora tem dois e espera vir a encorajar maior produção, até porque os seus planos incluem vir a fazer também manteiga e iogurtes.
Fazer o queijo revelou-se uma aventura bem mais complexa do que tinham imaginado. Um dos problemas era o que fazer ao soro que sobrava. Como querem ter um processo de economia circular, sem desperdício, compraram alguns porcos (neste momento já têm 110) para comerem o soro durante a época de produção do queijo. No resto do tempo, diz Anabela – a Bela, como aqui é conhecida – alimentam-se com os mirtilos, as abóboras, as melancias que ali se produzem.
Quanto ao queijo, tem dois momentos: mais mole, na época em que as cabras têm leite, e mais curado, de sabor mais intenso no resto do ano (Bela usa o mínimo de sal possível, pelo que as notas salgadas são do próprio envelhecimento do queijo). Foi este, curado, que alguns dos chefs usaram, à semelhança do parmesão, ralado, por exemplo, sobre um arroz cremoso de cogumelos.
Azeite Egitânia
Tiago Lourenço e Ricardo Araújo são dois jovens sócios que se juntaram para recuperar um olival tradicional, centenário, na região de Idanha-a-Velha (Egitânia, no tempo dos visigodos) e fazer um azeite de qualidade com o perfil dos azeites da Beira Baixa – e biológico, claro, com a ajuda das ovelhas, que fazem a limpeza comendo as ervas e os rebentos basais das oliveiras, ao mesmo tempo que ajudam a fertilizar os solos pobres da zona.
“Quisemos recuperar as variedades tradicionais, que estavam ao abandono, e fazemos um blend com a Galega da Beira Baixa, a Bical e a Cordovil de Castelo Branco. São variedades adaptadas geneticamente ao clima desta região”, apresenta Tiago.
O resultado é um azeite que se situa algures entre os mais picantes e amargos de Trás-os-Montes e os mais doces e frutados do Alentejo. “Nós aqui estamos mesmo no final da linha da Galega, por isso temos um equilíbrio. O nosso azeite não é extremamente intenso, mas é complexo. A Bical e a Cordovil são mais interessantes ao nível dos picantes e amargos, e a Galega, dos frutados”, descreve.
Há muito trabalho a fazer, diz, sobretudo “para que o público português entenda um azeite de qualidade”. Mas esta “tem sido uma aventura fabulosa”.
Vinho Herdade do Escrivão
A Herdade do Escrivão foi das primeiras em Portugal a seguir o caminho da produção biológica, orgulha-se Miguel Valente. “Temos uma grande tradição agrícola na região”, conta, “com muitos hectares, uma grande produção de porcos, salsicharia… e em 1998 decidimos passar a biológico, estamos entre os pioneiros”.
O processo de certificação não foi difícil porque os métodos que usavam já se baseavam muito na utilização do estrume dos animais para a fertilização das terras. Sorri ao recordar que foram dos primeiros a ter cabritos biológicos, que vendiam por um preço mais baixo do que os convencionais, porque o mercado não valorizava.
Para além do azeite (têm 20 hectares de olival), há uns anos lançou a marca de vinho Herdade do Escrivão (por enquanto apenas tinto, mas, dentro de dois anos, também branco) e aventurou-se na produção segundo o método biodinâmico. Está satisfeito com o resultado: “Sinto que as coisas estão a correr bem, tive até aumentos de produção, apanhamos mais quilos por hectare, o vinho tem grau, as uvas estão saudáveis.”