A União Europeia quer pôr os jovens a comer carne de porco. Porquê?

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A Comissão Europeia disponibilizou 7,5 milhões de euros para apoiar uma campanha em Portugal, Espanha e França idealizada pelas organizações de produtores que promove o consumo de carne de porco. O P3 falou com produtores, activistas e profissionais da área da nutrição para fazer o balanço das razões e motivações do projecto Let’s Talk About EU Pork.

É um investimento de 7,5 milhões de euros para fomentar o consumo de carne de porco. A Comissão Europeia aceitou a proposta dos três países que se candidataram com o projecto Let’​s Talk About EU Pork, Portugal, Espanha e França, e financiou a campanha destinada a desmistificar mitos relacionados com a produção de carne suína. Para Portugal, destinam-se 1,4 milhões de euros geridos por dois grupos: Aligrupo – Agrupamento de Produtores de Suínos e Agrupalto – Agrupamento de Produtores Agro-pecuários.

No comunicado lançado pela Comissão Europeia constam os pontos que motivam esta campanha. “A carne de porco é a carne mais consumida em toda a Europa. Apesar disso, o seu consumo diminuiu (…)”, lê-se logo na primeira frase. O documento dá conta ainda de “controvérsias” relacionadas com a “sustentabilidade” e “bem-estar animal” que justificam a diminuição do consumo. Do lado dos produtores, Vítor Menino, presidente da Aligrupo, afirma a necessidade de “desmistificar e informar quanto ao modelo de produção que se tem na Europa, nomeadamente o português”. “Somos um sector dinâmico que procura ir ao encontro dos objectivos da sociedade e dar respostas positivas e muitas vezes somos mal-encarados por alguns sectores da sociedade”, explica. A Aligrupo congrega cerca de 80 explorações detidas por 40 empresas e produz cerca de 250 mil porcos por ano. Em 2019, o sector movimentou cerca de 2 mil milhões de euros, 135 milhões só em exportações.

Ao P3, um porta-voz da Comissão Europeia explica que a selecção dos projectos a serem financiados é feita com base em “processos abertos e bem definidos envolvendo as partes interessadas e os Estados-membros, tal como avaliadores externos”: “As organizações de produtores enviam as suas propostas de ideias para promoção, com base em necessidades bem justificadas e também participam no financiamento das campanhas.”

A mesma fonte indica que “a promoção de produtos agrícolas europeus e a sua qualidade dentro e fora da União Europeia é uma dimensão importante do apoio que a Comissão pode dar aos agricultores e produtores europeus para melhorarem e encontrarem novos mercados para os seus produtos e aumentarem a competitividade e sustentabilidade do sector agrícola europeu”. Tal pode abarcar muitos tipos de produtos, como “frutas, vegetais, flores, vinho, azeite e também carne”, tudo depende da “necessidade”. Segundo a Comissão Europeia, o financiamento desta campanha “nada tem que ver com escolhas individuais de dieta; tem que ver com contribuir para que os cidadãos tenham a informação completa para que essas escolhas sejam feitas da melhor forma possível”. “É importante ainda referir que foi lançada a 8 de Maio uma consulta pública sobre promoção de produtos agrícolas pela Comissão Europeia num esforço contínuo para avaliar e adaptar as políticas existentes”, conclui o porta-voz da Comissão.

Apesar da diminuição do consumo de carne de porco assumida pela Comissão Europeia, Vítor Menino, presidente da Aligrupo, não confirma uma redução significativa: “Se estamos a falar no curto prazo, depois da covid-19 há uma refracção do consumo por questões eventualmente óbvias, por medos ou porque o canal Horeca [hotéis, restaurantes e cafés] deixou de funcionar. Agora, no cômputo geral, não notamos essa tendência de baixa de consumo.”

O responsável considera importante a dimensão informativa desta campanha. “Tem vontade de, de forma séria e transparente, mostrar que sabemos fazer, fazemos bem, fazemos respeitando o ambiente e a sociedade”, diz, referindo-se ao sector da suinicultura. No site da campanha, que expõe vídeos, imagens e texto, o conceito de “desmistificar” é aproveitado de forma intuitiva: há uma secção Fake or real, “mito ou realidade”, que põe à prova ideias e conceitos. Explorando o modelo de produção europeu, a campanha diz que este se baseia em quatro pontos: “Bem-estar animal, saúde animal, alimentação animal e prevenção e controlo integrado de poluição.” A partir daqui, são vários os “mitos” que se propõe a explicar.

Dos assuntos mais sérios aos mais triviais, há de tudo, quer em texto quer em vídeo. “O nosso target é o público mais jovem, porque este público procura qualidade, privilegia produtos fáceis de cozinhar, é sensível a hábitos de alimentação saudáveis e prefere produtos sustentáveis e ambientalmente responsáveis; depois, porque os mais jovens, hoje mais informados, também são os consumidores do futuro e também vão transmitir saberes”, prossegue Vítor Menino. “É importante para nós que a geração mais nova esteja conscientemente informada quanto ao nosso modelo de produção e à forma como produzimos.” Num formato pergunta-resposta, esclarece-se quanto aos mitos. “Ela diz que um dos primos, que sabe de tudo, lhe disse que se comer demasiada carne de porco pode ficar com o cabelo cor-de-rosa. Falso”, ouve-se no vídeo Pink. Este é um exemplo.

Bem-estar animal e as cinco liberdades

bem-estar animal é outro dos pontos abordados nesta campanha, que lança o mote com a seguinte frase: “Li num blogue que não há nenhuma legislação internacional em que os animais estejam em maior segurança e mais bem protegidos do que na União Europeia.” O veredicto? “Verdadeiro.” O argumento explanado no site baseia-se nas “cinco liberdades definidas pelo conselho de bem-estar animal das explorações pecuárias: livre de fome, sede e desnutrição; livre de medos e ansiedades; livre de desconforto físico ou térmico; livre de dor, lesão ou doença; livre para expressar padrões de comportamento”. Vítor Menino reforça esta ideia: “Na Europa e em Portugal somos de longe a produção mais regulamentada e desenvolvida no mundo. A legislação europeia é mais rigorosa no que toca a bem-estar animal.”

Partindo do “princípio de que esta definição” das cinco liberdades, avançada por Roger Brambell em 1965, “reúne critérios aceitáveis, com os quais podemos concordar, relativamente ao bem-estar dos animais explorados para fins alimentares”, o sociólogo Rui Pedro Fonseca considera que é necessário ter em consideração “algumas das práticas de maneio, transporte e de abate de animais da espécie suína”. O autor do livro A Vaca Que não Ri. Animais, Carne e Leite Bovino na Cultura Dominante afirma que “não existe qualquer bem-estar: estes animais experienciam desconforto e dor; lesões e doenças; experienciam medos e angústias e não expressam comportamentos normais”.

“As porcas reprodutoras, forçadas a inúmeras gestações, embora tenham deixado de estar enjauladas isoladamente, passaram a estar confinadas nos designados ‘parques comunitários’, onde permanecem habitualmente presas, praticamente sem se moverem, muitas vezes sem acesso à luz do dia (…) Onde há bem-estar animal quando estas fêmeas são reiteradamente forçadas a procriar e em que experienciam desconforto permanente por mal se mexerem?”, reitera o sociólogo.

Para além disso, Rui Pedro Fonseca refere más práticas em diferentes partes do processo, como é o caso das castrações sem analgésicos e o tratamento nos matadouros: “A directiva n.º 93/119/CE (de 22 de Dezembro) relativa à ‘protecção dos animais no abate e/ou occisão’ menciona ser ‘proibido espancar os animais (…) e que são proibidas as pancadas aplicadas com brutalidade, designadamente os pontapés’. Mas o uso destes procedimentos é inevitável durante o seu ‘encaminhamento’ das abegoarias para as mangas. Onde há bem-estar quando se chegam a ouvir os berros de desespero destes animais à porta de qualquer matadouro?

Reagindo a estas acusações, que descreve como “vagas e genéricas”, Vítor Menino afirma que “todas as práticas de bem-estar animal estão perfeitamente enquadradas pela legislação comunitária e nacional” e rejeita os relatos, que diz serem “ficcionados”, sobre a gestação das porcas reprodutoras — tal configuraria “uma prática aberrante”, uma vez que “o ciclo reprodutivo depende directamente da exposição dos animais à luz solar”. Realça ainda que, “no caso específico dos sistemas de criação e engorda intensiva de suínos, os procedimentos de maneio em matéria de bem-estar animal são estabelecidos pelo Decreto-lei 135/2003” e incentiva à “denúncia às autoridades competentes” no caso de haver “conhecimento concreto de más práticas”.

“​Um conflito entre pelouros: a Agricultura, o Ambiente e a própria Saúde”​

As questões ambientais também são abordadas na campanha: “Li no Twitter que os porcos produzem poucos gases com efeito de estufa; por isso, a sua produção na Europa tem um impacto reduzido nas alterações climáticas. Verdadeiro.”

Descargas das suiniculturas no rio Lis. RUI PEDRO FONSECA

A questão centra-se na emissão de gases, cujos valores são confirmados por Vítor Menino: “A suinicultura portuguesa, relativamente aos gases com efeito de estufa, apenas é responsável por 0,34% das emissões totais do país, dizem os dados do Instituto Nacional de Estatística. Relativamente ao sector pecuário, apenas somos responsáveis por 5,25% da emissão de gases com efeito de estufa.”

Bebiana Cunha, deputada do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) na Assembleia da República, denuncia, no entanto, as descargas de resíduos provenientes destas explorações que constituem um perigo para as regiões. “Não existe um tratamento adequado dos respectivos efluentes. Temos denunciado a prática de descarga destes resíduos nos meios hídricos, nomeadamente na região de Leiria.”

Rui Pedro Fonseca reforça também o problema da poluição no rio Lis, em Leiria, “que, há quase três décadas, é frequentemente fustigado pelas descargas ilegais ou criminosas de excrementos libertados por algumas das 400 suiniculturas que proliferam na região de Leiria”. O sociólogo acredita que a situação resulta numa deterioração tanto ambiental como da própria qualidade de vida.

Estes dois pontos levaram o PAN a enviar uma questão tanto ao Ministério do Ambiente como ao Ministério da Saúde relativamente a esta iniciativa. “Os objectivos desta campanha são claramente contrários àquilo que é o roteiro para a neutralidade carbónica 2050. Queremos explicações por parte do Ministério [do Ambiente] para saber como se posiciona em relação a isto”, pergunta Bebiana Cunha.

Dentro do leque de questões levantadas pelo documento submetido a 6 de Agosto, o PAN questiona o Ministério do Ambiente e da Acção Climática sobre “qual a redução prevista do número de suínos no Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, de forma a dar cumprimento à trajectória de redução de emissões do sector pecuário, em 2030, 2040 e 2050” e ainda “que diligências tem o ministério previstas relativamente ao tratamento dos efluentes das suiniculturas em Portugal”. Além disso, dirige-se ao Ministério da Saúde com a seguinte pergunta: “Sendo a própria Direcção-Geral da Saúde que recomenda a redução destes produtos para ‘momentos ocasionais’, de que forma vai o ministério conciliar o que consta no Programa Nacional para a Alimentação Saudável com esta campanha?”

Ana Helena Pinto é nutricionista e fundadora do projecto Nutrition For Happiness. ADRIANO MIRANDA

“Temos um conflito entre pelouros”, considera Bebiana Cunha. “A Agricultura, que quer incentivar o consumo e aumentar a exportação; e, por outro lado, o Ambiente e a própria Saúde”, observa.

O que a nutrição diz sobre o assunto

“Benefícios nutricionais” é outro dos temasavançados pela campanha. Desta vez, o mote passa pela afirmação de que “a carne de porco é rica em proteínas e em vitaminas B6 e B12 que contribuem para o normal funcionamento do sistema imunitário. “Verdadeiro.”

Indo ao encontro do argumento avançado pela campanha, a nutricionista Ana Helena Pinto confirma que a carne de porco proporciona “mais facilmente alguns nutrientes, nomeadamente as vitaminas de complexo B, o zinco e o fósforo”. “O que não quer dizer que uma dieta vegetariana não seja saudável, mas tem de haver uma gestão nutricional muito mais cuidada, porque alguns nutrientes são específicos dos produtos de origem animal e nesses casos tem de haver uma compensação”, realça.

Se uns optam pela abolição do consumo e outros incentivam o mesmo, a nutricionista considera que “as pessoas não têm necessariamente de excluir a carne, mas devem diminuir o consumo”.“Independentemente da filosofia, valores ou cultura, todos nós devíamos reduzir quer a frequência quer a quantidade de refeições com carne que fazemos”, realça. “Se falarmos em números, cerca de 34% da população come, em média, 100 gramas de carne por dia. Os estudos mais recentes dizem-nos que, para termos uma alimentação sustentável e, portanto, saudável, devíamos comer 98 gramas de carnes vermelhas por semana.”

Ana Helena Pinto acredita ainda que “a alimentação tem uma vertente cultural e sociológica muito grande” que não pode ser descuidada e sublinha que não pode haver alimentação sustentável sem haver uma alimentação saudável: “Se a saúde não faz parte dos valores de sustentabilidade, então não há sustentabilidade.”

Para além disso, reforça a importância de consumir carne “de qualidade”: “A carne de qualidade tem de ter esta visão integral, com qualidade de saúde e de impacto. O selo da campanha diz-nos qual a origem e procedimentos da produção. Podemos e devemos ir mais além e olhar também, por exemplo, para a preservação da biodiversidade genética em termos das raças. (…) E é importante que os animais sejam alimentados com produtos autóctones.”

Vítor Menino, presidente da Aligrupo, assume ainda essa preocupação do lado dos produtores: “Quando falamos, por exemplo, em redução da utilização de antibióticos, estamos na vanguarda daquilo que se faz em qualquer parte do mundo. Estamos perfeitamente direccionados a produzir com segurança.”

Uma “reacção do mercado à consciência social”

No assumir de responsabilidades, Vítor Menino não hesita em garantir a preocupação do grupo com a produção segura. “Somos os primeiros a reduzir o uso de antibióticos na alimentação. Em termos de emissão de gases, estamos fortemente empenhados nessa redução e comprometidos. Em termos alimentares e de biossegurança nas explorações, temos uma legislação extremamente exigente e proactiva. Tudo fazemos para produzir cada vez com mais segurança e responsabilidade pelo território, pelas pessoas e pelo mundo em que estamos inseridos.”

Se isto é suficiente? Bebiana Cunha acredita que esta campanha é “uma reacção do mercado àquilo que é uma maior consciência social e das gerações mais jovens face ao consumo de alimentos de origem animal”. Para Rui Pedro Fonseca, “tem de ser encarada como uma mera manobra de marketing de um sector que procura obter mais saída de produto de origem animal no período mais curto possível, sob o mantra de eficácia económica”.

Por seu lado, Vítor Menino reforça que é necessário que a sociedade “tenha noção que a suinicultura é um pilar económico e social importante e que em Portugal representa um volume de negócios de 2 mil milhões de euros e assegura mais de 80 mil postos de trabalho, contribuindo para a fixação das populações no mundo rural, evitando muitas vezes fenómenos como o despovoamento”.

Texto editado por Amanda Ribeiro

Artigo actualizado com as declarações do porta-voz da Comissão Europeia

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